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Há atletas infelizes? Relaxar traz bons resultados? Pedro Vieira responde

LIFE Training

Pedro Vieira, coach

Jogos Olímpicos, o “depende” à volta de Simone Biles, a autoestima, as atitudes infantis no futebol… Pedro Vieira, especialista em neuro estratégia, programação neurolinguística e coaching, conversou com o ZAP sobre tudo isto e ainda mais. Um diálogo para fazer refletir e que se centrou em alguns assuntos basilares no desporto (e na vida) – mas que raramente são aprofundados na praça pública.

ZAP – Toda a sequência da Simone Biles nos Jogos Olímpicos: o que dizes sobre isso?
Pedro Vieira – As componentes mentais e emocionais são muito importantes no desporto. Os treinadores de futebol, por exemplo, dizem muitas vezes que foi a mentalidade, ou o descontrolo emocional, a fazer a diferença. Mas raramente aprofundamos isto: o que é que isto quer dizer? Que tipo de ferramentas há? A Simone Biles trouxe para o palco a importância da questão mental e da questão emocional. E do sofrimento, em particular. O sofrimento pode ser tão forte que leva uma atleta, no auge da sua carreira, a tomar a decisão que tomou: prefiro não lidar agora com esta pressão, com estes sentimentos, do que forçar-me a continuar na prova. E tem havido muitas discussões à volta disto: foi uma coisa boa? Foi uma coisa má? Ela fraquejou mentalmente e desistiu (que é suposto um atleta menos quer fazer)? Ela foi corajosa e colocou-se em primeiro lugar?

ZAP – E, no meio dessas perguntas todas, qual é a tua postura?
Pedro – Vou responder com o politicamente correto “depende”. Não conheço a Simone Biles, não sei bem responder. Pareceu-me um efeito bastante positivo porque ema série de atletas olhou para isto e pensou: se uma atleta deste calibre foi capaz de desistir, se calhar eu também tenho essa possibilidade, se em algum momento sentir que o sofrimento é demasiado. Porque há sempre pressão à volta dos resultados. O valor dos atletas vai muito além do seu desempenho desportivo. Muitas vezes os atletas não entendem isto. E tem a ver com o que ouviram desde pequenos, da parte dos pais, das pessoas mais próximas, dos treinadores… O atleta acha constantemente que, para sentir valor, tem de mostrar resultados. É muito comum os atletas dizerem: “Eu tenho de provar o meu valor”. É um processo que desgasta muito, psicologicamente. Os Jogos Olímpicos são utilizados como uma espécie de promessa eterna: se eu me esforçar o suficiente, se eu fizer o suficiente, vou conseguir. Centramo-nos sempre nas histórias dos vencedores e focamo-nos sempre numa estrutura exagerada, que é: “Se tu fizeres o que ele fez, também vais ter oportunidade de ser o medalhado de ouro”. Quer seja no desporto, ou noutra área profissional, ou na família. E isto cria muita pressão. A Simone sublinhou o facto de o mais importante é eu sentir-me bem. Só que alguns atletas criam estas estruturas psicológicas tremendas, que são: “Eu só me vou sentir bem se conseguir ganhar o ouro, se for o melhor. É aí que eu provo o meu valor e que mereço o reconhecimento dos outros”.

ZAP – No meio de uma discussão entre uma atleta paralímpica brasileira e a guarda-redes da seleção brasileira de futebol, surgiu a frase: “Eu sou uma das melhores do mundo. Tu estás entre as melhores do país?”. Estamos com o instinto automático do “eu sou melhor do que tu!”?
Pedro – É o jogo de provar aos outros o meu valor. São os processos do ego, aí. Tentar afirmar-me, mostrar-me como superior. Mas isso é sempre uma velha ilusão. A entrada nessa troca de frases dificilmente produzirá qualquer resultado, para qualquer uma das atletas. O melhor é focarmo-nos em nós e nos confrontos com os nossos limites. Esfregar isso na cara dos outros… É um mecanismo pouco eficiente, não se ganha nada com isso.

ZAP – Sendo ou não eficiente, isto acontece porquê?
Pedro – A autoestima. Como é que me relaciono comigo? Quando tenho uma autoestima saudável, gosto de mim e relaciono-me bem comigo independentemente dos resultados; convivo bem com o facto de ser o número 238 e não ser o número 1. Quando a autoestima não é muito saudável, vou em busca do exterior para servirem de prova do meu valor – e aí vou começar a atirar coisas para a cara dos outros, começo a chateá-los, a dizer que sou melhor do que eles, que no lugar deles faria melhor… Mas, no desporto ou não, acho que nos conseguimos lembrar de pessoas que atingiram resultados extraordinários e que não estão constantemente a falar sobre isso.

ZAP – Falta autoestima saudável à maioria dos atletas?
Pedro – À maioria não, mas a muitos sim, certamente. Mas isso não torna os atletas diferentes do resto da população. A maior parte de nós debate-se com isso. Muitos de nós crescemos num ambiente familiar ou educativo em que o nosso valor é visível através de resultados. Entramos em comparações… Viciamo-nos no elogio, no reconhecimento externo. E normalmente isso não origina autoestima saudável.

ZAP – O Nélson Évora disse em Tóquio que os atletas, quando vão competir, têm que estar felizes e não frustrados. Há atletas infelizes?
Pedro – Sim, sobretudo quando sentem que chegou o momento de provarem o seu valor. Um momento importante na vida, na carreira: consigo ou não consigo? E isso traz uma tensão grande. Acho que o Nélson Évora quis destacar que, quando um atleta está tão tenso, é importante pedir ajuda e aprender a focar-se nas coisas boas. Nos Jogos Olímpicos, por exemplo, em vez de se focarem no “e se eu não consigo…?”, podem focar-se na parte de “quão bom é poder estar na maior competição desportiva do mundo”.

ZAP – A Evelise Veiga comentou, também durante os Jogos Olímpicos, que o caminho de atleta origina solidão, muitas vezes. Deixa de haver vida extra desporto? É uma escolha dos atletas?
Pedro – Aí faço uma divisão importante: modalidades individuais e modalidades coletivas. Nas individuais o esforço é diferente, a experiência é mais intensa. E uns dizem que há solidão, outros dizem que não há solidão nenhuma. Um coach, um psicólogo, pode ajudar a definir melhor as rotinas, os caminhos. E aqui entra também a especialização precoce: quantos atletas dizem: “Tenho 20 anos e pratico desporto desde os 5”? Nos países nórdicos, por exemplo, há muita diversidade na prática desportiva. Incentiva-se os miúdos a experimentarem muitos desportos, até se limita o número de treinos por semana em cada modalidade. Cá, por exemplo, um miúdo de 5 ou 6 anos que pratica uma modalidade individual e que já treina diariamente, que já tem treinos muito intensos todas as semanas…isso pode ajudar a criar solidão.

ZAP – A Cátia Azevedo disse que os atletas, e as pessoas no geral, são cruéis com elas próprias, que ninguém resume um ano de trabalho num dia de trabalho. Sublinhou que uma atleta é muito mais do que uma medalha. A autoavaliação dos próprios atletas pode ser demasiado negativa?
Pedro – Sim e esse é um mecanismo muito natural. É um mecanismo de proteção e até saudável: examinar o meu erro para fazer melhor na próxima vez. Mas, em qualquer área, focamo-nos no pior do nosso desempenho, mesmo que a prestação tenha sido boa no global. Isso só é problemático se deixarmos de ter a visão global. E alguns atletas focam-se só no momento que falharam, apesar de terem tido uma prestação incrível. Isso pode ser problemático, pode impedir os atletas de viverem as coisas boas.

ZAP – No skate, na final feminina, as atletas estavam totalmente descontraídas e felizes. Ficassem no primeiro ou no último lugar. A pressão é diferente aos 15 anos e aos 30 anos?
Pedro – Pode ser diferente. Mas pode ser igual. Há atletas de 30 anos que são capazes de competir (mais ou menos) com esse comportamento. Mas essa é uma questão importante no desporto de competição: a partir do momento em que o atleta aprende a desprender-se do seu resultado, como ele não sente a pressão de “eu tenho de ganhar para provar quem sou”, curiosamente ele vai ter maior probabilidade de ganhar. Só que, ao longo do tempo, a regra passou a ser: “Se está muito relaxado, se se está a rir no meio do treino, não está a levar a sério”.

ZAP – Vários jogadores já foram criticados dentro do seu clube por sorrirem e por conversarem com adversários, depois de uma derrota. Como se fosse proibido…
Pedro – E isso acontece noutras áreas, não só no desporto. Um profissional descontraído pode gerar a ideia de que não é um profissional sério, que não se está a dedicar. Esse cenário da final olímpica do skate parece ser um cenário ideal: atletas descontraídas, relaxadas, a sentirem-se bem, e ao mesmo tempo a fazerem coisas espetaculares, que encantam o público. Muitos atletas dizem, até com orgulho: “Quando perco não consigo falar com ninguém, tenho que me isolar durante uma semana, fico muito mal” – e às vezes olhamos para isto como? “Sim senhor, isto é que é um atleta! Dedicado, focado, obcecado, comprometido”. Mas à custa de quê?

ZAP – A conclusão é: sorrir faz bem à pessoa e até pode fazer bem aos resultados.
Pedro – Exatamente. É uma bela conclusão.

ZAP – Continuamos a ouvir a frase: “Sou contabilista mas também sou jardineiro. Mas só sou jardineiro por desporto”. Ainda há muito a ideia de que o desporto é uma brincadeira?
Pedro – Por um lado, sim. É uma ideia que vem do tempo em que ser desportista não era uma profissão. Mas, ao mesmo tempo, dizemos: “Tenho de me aplicar na minha profissão como um atleta se aplica no seu desporto”.

ZAP – Agora o futebol. Uma equipa «pequena», quando defronta uma «grande», pára o jogo propositadamente, gasta muito tempo para executar um lançamento, para um livre, fingem-se lesões… E ouves o jornalista ou comentador dizer: “Isto é normal, a equipa está a portar-se muito bem”. A mentira faz parte do jogo. Porque estamos assim?
Pedro – Isso é sobretudo a cultura do futebol. É um código implícito, que foi passando gerações, entre jogadores e treinadores. Noutras modalidades é diferente. Em muitos desportos as próprias regras impedem certos comportamentos. Um exemplo, o andebol: se não pousas imediatamente a bola para a equipa adversária cobrar um livre, levas uma exclusão de dois minutos. No futebol atira-se a bola para longe… Esses comportamentos, na sua génese, até são um bocado infantis: fazer de conta que estão lesionados, dizer que não toquei na bola quando sei que toquei… Mas, se fores entrevistar os adeptos, muito dificilmente vais encontrar um que diga: “Eu gosto é de um jogador que engana muito, que aldraba”. As pessoas não gostam disso. Mas, no momento da competição, mostramos o que é importante para nós. E nem todos têm esse tipo de comportamentos, quando estão a ganhar. Isso também faz parte das conversas internas nos clubes: “O que queremos ser? Que valores queremos transmitir? Como vamos demonstrá-los em campo?”. Parece difícil quebrar este ciclo vicioso, de “desde que eu ganhe, vale tudo”. Todos nós poderíamos mudar o foco e centrarmo-nos nisto: “Claro que poderíamos ter feito antijogo, mas isso não somos nós. É preferível perder o jogo”. Mas repara como isso é difícil de assumir. Se o treinador ou o jogador perder, pode colocar em risco o seu emprego.

ZAP – Não sei se assumir é apenas difícil. Nos dias que correm, assumir isso é uma utopia…
Pedro – É uma utopia até alguém começar a fazê-lo, de forma estratégica. Um clube pode assumir que não recorrer ao antijogo é uma bandeira sua. E pode começar aí uma boa campanha de marketing. E pode começar a contagiar os outros, quem sabe?

ZAP – Estarei atento. Que cultura desportiva estamos a transmitir às crianças?
Pedro – Aí há coisas diferentes a acontecer. Por um lado, temos dezenas de milhares de pessoas ligadas ao desporto, com grande empenho, sem receberem “nada” em troca, e a gerar cada vez mais resultados com os recursos que têm; não terá sido por acaso que tivemos a melhor participação olímpica de sempre, em termos de resultados. Por outro lado, que valores estamos a transmitir? Sobretudo no futebol, quando isto é mais acerca de enganar e ganhar a qualquer custo. E depois ainda temos a terceira coisa, que para mim é a mais importante: o meu exemplo enquanto praticante de desporto. Cada um de nós praticar desporto e incentivar e criar condições para as crianças praticarem também, de uma forma saudável – aqui reside o nosso principal mecanismo de intensificação de cultura desportiva.

Entrevista completa:

Nuno Teixeira, ZAP //

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