Na Quinta do Ferro, no coração de Lisboa, o cenário é descrito pelos moradores como “assustador” e “uma miséria”. Neste bairro, há quem viva sem luz e ainda despeje os dejetos na rua como em séculos passados.
Se há prédios que estão com bom aspeto, outros estão completamente degradados, ainda que tenham inquilinos a morar. A agência Lusa constatou que, no local, há moradores a despejar dejetos numa fossa, ou mesmo para a rua, uma vez que as suas casas não reúnem as condições básicas de saneamento.
“Isto é uma miséria. Há pessoas que não têm água, há muita gente a viver com mais dificuldades. E eu tenho medo. Temos aqui um chafariz ao pé e as pessoas vêm aqui despejar tudo e mais alguma coisa”, conta à Lusa Lina Silva, de 44 anos, que mora na Quinta do Ferro há oito anos.
Os moradores sentem-se abandonados e esquecidos, apesar de se situarem na freguesia de São Vicente – uma zona central situada perto do Bairro da Graça e de Santa Apolónia. “A câmara não se lembra que isto aqui existe. Nós estamos no meio de uma cidade. O que é mais triste é que nós estamos no meio da cidade de Lisboa e não há meio de termos uma solução”, lamenta Lina.
O cenário retratado por Uriana Andrade Silveira, de 38 anos, é semelhante. A moradora afirma ter condições mínimas de higiene dentro de casa, mas salienta que a Quinta do Ferro “é um bairro que não tem condições”. “Aqui na rua há baratas, há muitos bichos aqui e aparecem em casa. É muito complicado estar aqui com crianças e tudo”, relata.
Já Paula Vilasboas, de 46 anos, enfrenta uma praga de percevejos em casa devido à humidade, o que a obriga a pernoitar fora do seu lar. “De momento estou a dormir na minha carrinha porque os meus filhos estão no quarto deles, e não vou estar a pedir aos meus filhos para dormir lá. Então vim para a minha carrinha, à porta de casa”, diz, ladeada pelo marido.
Rosa Gomes, da Associação Amigos da Quinta do Ferro, que junta proprietários e moradores, sublinha que as “principais dificuldades” sentidas no bairro se prendem com a falta de emprego e de uma “habitação condigna”. “Não gosto de ver as pessoas a viver aqui sem casas de banho, sem água, sem nenhuma higiene. Isso para mim é assustador no século XXI”, afirma.
Tiago Mota Saraiva, da cooperativa “Trabalhar com os 99%”, explica à Lusa que há cerca de cinco anos – em conjunto com os moradores e proprietários – foi iniciado o processo de construção de um projeto de reabilitação da Quinta do Ferro.
O projeto foi entregue em 2017 à câmara, para depois “empancar quando começa a chegar ao (serviço de) Urbanismo” do município. Passados três anos, “sabe-se muito pouco sobre aquilo que poderá ser o futuro”, explica Tiago Mota Saraiva.
“Nestes processos tem de se responder rapidamente. As instituições públicas têm de perceber que há aqui uma sinergia, que há aqui uma vontade interessante de um processo comum e que há uma nova forma de produção de cidade”, defende.
Questionado pela agência Lusa, o vereador do Urbanismo, Ricardo Veludo, afirma que em 2019 o município transmitiu aos promotores do projeto a sua discordância com alguns pontos, solicitando a melhoria desses aspetos, algo que acabou por não acontecer.
Por isso, os serviços de Urbanismo desenvolveram um projeto de intervenção global, para todo o bairro, que está numa “fase final” e que o vereador espera poder apresentar aos moradores e proprietários ainda este ano, “para tentar resolver de forma adequada os problemas que ali existem”.
Ricardo Veludo refere que “não posso concordar que o projeto não inclua todo o território. Tem de abranger todo o território da Quinta do Ferro e tem de o qualificar”, considera, depois de dizer que o projeto da cooperativa mantinha “a zona mais pobre” da Quinta do Ferro, transformando “só uma parte do bairro”.
“Todos os proprietários têm de ter um tratamento igual em termos de direitos de construção, mas também de participação nos custos”, acrescenta. O vereador do Urbanismo refere também que os promotores propunham a construção de habitação num “terreno muito inclinado e sem condições adequadas”.
“Eu penso que é importante trabalharmos para termos uma solução que permita não só qualificar urbanisticamente todo o bairro, mas que também encontre um solução justa para todos os que lá vivem. E isso tem de ser feito com o envolvimento e a participação dos proprietários. Porque eles é que são os senhorios, não é a câmara”, conclui Ricardo Veludo.
A solução tarda em chegar para os moradores que ambicionam viver em casas com condições dignas, numa zona de Lisboa que consideram ser “um sítio bonito para se viver”.
ZAP // Lusa