Por que é que 2% é o valor de referência da inflação? Por que não 0% ou 3%?

Ronald Wittek / EPA

A presidente do BCE, Christine Lagarde.

As instituições reguladoras têm sempre 2% como o valor de referência para a taxa de inflação, mas há economistas que questionam se a subida das taxas de juro não acaba por ser pior do que ter uma inflação mais alta.

Inflação é certamente uma das palavras que mais marcou o ano de 2022. A escalada de preços começou fruto do corte de relações do Ocidente com a Rússia, como retaliação pela invasão à Ucrânia.

Sendo a Rússia um dos maiores fornecedores de gás natural e petróleo da Europa, esta situação fez os preços da energia disparar e desencadeou um efeito de bola de neve e contagiou toda a economia. A escalada de preços chega agora a practicamente todos os sectores e tem arrasado o poder de compra da população.

Muito se tem falado da importância de manter a taxa de inflação a rondar os 2%, apesar de o valor em Novembro ter sido de 9,9% em Portugal e de 10% na zona euro. Nos Estados Unidos, o pico de 9,1% foi alcançado em Julho.

Tanto o Banco Central Europeu (BCE) como a Reserva Federal dos Estados Unidos têm anunciado subidas das taxas de juro — que estão a aumentar as prestações dos créditos à habitação — para tentar obrigar a inflação a descer para os 2%. Os aumentos têm sido ainda mais constantes no caso do regulador norte-americano, na esperança de manter o dólar em alta perante a desvalorização do euro e da libra.

Mas, afinal, por que é que o valor de referência é 2%? Por que não 0% ou 3% ou qualquer outro número?

De acordo com a economista Veronika Dolar, a escolha do número foi aparentemente aleatória. “Não há provas teóricas ou empíricas que expliquem o objectivo de 2%. A origem do valor é um pouco obscura, mas há alguns relatórios que sugerem que  surgiu numa declaração casual feita pelo Ministro das Finanças da Nova Zelândia numa entrevista televisiva no final dos anos 80″, escreve no The Conversation.

Desde 1996 que a Reserva Federal adoptou a taxa de 2% como o seu objectivo. Em Janeiro de 2012, o então Presidente Ben Bernanke oficializou este valor e os seus sucessores têm segurado esta meta.

No entanto, até há pouco tempo, o problema não era a inflação ser demasiado alta, mas sim ser muito baixa — o actual Presidente Jerome Powell deixou até que a inflação subisse além dos 2% em 2020 —, o que traz um outro conjunto de problemas para a economia.

Estes riscos ameaçam fazer a economia entrar numa espiral deflacionária e explicam por que é que tentar manter a inflação nos 0% é má ideia.

Riscos da deflação

Quando a economia entra em recessão ou há indícios de que um recuo económico está para vir, a procura começa a diminuir

Caso esta tendência continue, os preços deixam de subir e podem até começar a cair, entrando em deflação. Este fenómeno pode parecer positivo já que aumenta o poder de compra dos consumidores, mas acaba por ser devastador para a economia.

Quando as pessoas notam que os preços estão a cair, começam a adiar cada vez mais as compras na esperança de que estes continuem a descer indefinidamente.

Por exemplo, quem quer comprar um carro novo que atualmente custa 60 000 euros percebe que, se esperar mais um mês, poderá comprar o mesmo carro por 55 000 euros. Mas passado um mês, quando o carro está à venda por 55 000 euros, aplica-se a mesma lógica. Para quê comprá-lo hoje quando se pode esperar um mês e poupar mais cinco ou 10 mil euros?

Este ciclo leva a que os produtores deixem de ter lucro e faz com que os negócios deixem de ser rentáveis. Consequentemente, o fecho das empresas gera desemprego e preços ainda mais baixos, entrando-se num ciclo de feedback negativo.

Por que não 3% ou 4%?

Se a deflação é assim tão devastadora, por que não apostar numa taxa de inflação maior do que 2%?

Uma subida descontrolada da inflação, tal como está a acontecer agora, também tem graves consequências económicas. Se os preços continuarem a aumentar e os rendimentos não acompanharem a subida, os consumidores perdem poder de compra e as famílias mais vulneráveis da população têm muitas vezes de decidir entre pagar a prestação da casa ou pôr comida na mesa.

“Mais ainda, há receios de que a criação de metas para indicadores como a inflação possa corromper a utilidade da métrica. Charles Goodhart, um economista que trabalhou para o Banco da Inglaterra, criou uma lei homónima que afirma: ‘Quando uma medida se torna uma meta, deixa de ser uma boa medida'”, explica Dolar.

Dado que a missão do BCE, do Banco de Inglaterra e da Reserva Federal é a estabilidade dos preços, o valor não é o objectivo em si. “A ideia principal é que se guie a economia para uma taxa de inflação alta o suficiente para haver espaço para reduzir as taxas de juro, se for preciso estimular a economia, mas baixa o suficiente para não se corroer seriamente o poder de compra dos consumidores”, remata.

Está na hora de abandonar os 2%?

Visto ser um número relativamente arbitrário, há já um coro de vozes que tem questionado se vale a pena subir as taxas de juro e causar uma recessão em nome da busca pelos 2% de inflação.

Nos Estados Unidos, os Senadores Republicanos Thom Tillis e Roger Wicker já disseram publicamente que consideram as previsões da Reserva Federal pouco realistas e vários pesos pesados de Wall Street também já questionaram o custo-benefício da subida constante das taxas de juro.

“Não acho que a Reserva Federal consiga que a inflação volte aos 2% sem uma profunda recessão que vai destruir o emprego. Mesmo que volte aos 2%, não vai ser estável a longo prazo. Aceitar uma inflação de 3% é uma estratégia melhor para uma economia mais forte e a criação de emprego a longo prazo”, defende o investidor Bill Ackman, citado pelo The Hill.

O congressista Democrata Raúl Grijalva sugere antes uma mudança de planos temporária. “Acho que durante um certo período de tempo, este é o novo normal. 2% deve ser o objectivo, mas ter alguma flexibilidade e espaço para respirar não seria um erro”, propõe. Até agora, Powell tem repetidamente rejeitado alterar a meta.

Um longo defensor de uma meta de 4% para a taxa de inflação, o economista Olivier Blanchard voltou a enumerar os seus argumentos num artigo para o Financial Times.

“Há 12 anos, o nosso argumento baseava-se numa análise directa de custo-benefício. Do lado do benefício, uma meta mais alta e, por implicação, taxas de juros nominais médias mais altas que dariam mais espaço para a política monetária reduzir as taxas de juros quando necessário”, afirma.

O economista explica ainda que “quando a meta de inflação de 2% foi escolhida, os seus defensores argumentaram que isso implicaria taxas nominais médias altas o suficiente para dar o espaço necessário para a política monetária reduzir as taxas de juro”, algo que “foi provado como errado“.

Blanchard acredita agora que, em vez de 4%, a meta mais desejável será 3%. “Suspeito que quando, em 2023 ou 2024, a inflação cair para os 3%, haverá um intenso debate sobre se vale a pena descê-la até aos 2% se isso implicar uma diminuição substancial nas actividades económicas. Ficaria surpreendido se os bancos centrais mudassem oficialmente a meta, mas podem decidir deixar a taxa ficar mais alto durante algum tempo e talvez, eventualmente, revê-la. Veremos”, conclui.

Adriana Peixoto, ZAP //

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