“Vizinho Amigo tem muitos voluntários, fiquem em casa e peçam ajuda”

Martim Ferreira conta como surgiu, como está e como acha que estará o Vizinho Amigo – um projeto que reúne milhares de voluntários em Portugal, que ajudam pessoas de grupos de risco desde que o coronavírus “fechou” o país. Um homem de desporto e sempre com muitas ideias. Esta resultou especialmente bem.

ZAP – As pessoas que são voluntárias no Vizinho Amigo fazem o quê?

Martim Ferreira (MF) – Ajudam as populações dos grupos de risco (que é importante referir que não são só idosos). Ajudam na compra de bens essenciais e de farmácia, impedindo que essas pessoas saiam de casa e que se exponham mais facilmente ao vírus.

ZAP – O projeto surgiu porque algum de vocês viu um caso concreto à frente? Ou foi um pensamento mais geral?

MF – Foram vários pensamentos. Somos uma equipa de 15 pessoas. Tive a ideia na tarde de 13 de março de 2020, lembro-me de que foi o meu primeiro dia em casa. Tinha visto vários casos em Itália, de vizinhos que se tinham juntado localmente, que tinham criado uma rede de voluntariado para ajudar os mais velhos. Uma coisa mais pequena, de menor dimensão. Pensei: as pessoas dos grupos de risco vão ter de ficar em casa, isto vai ser um problema. Senti que tinha de ser criado um grande grupo de voluntários em todo o país, que tentasse ajudar da forma mais eficaz e rápida possível. Era importante agir rapidamente, na altura. Tentámos logo juntar o maior número de voluntários possível. Felizmente a coisa correu bem, já somos alguns. E damos liberdade aos voluntários, deixamos os voluntários fazer o trabalho deles.

ZAP – Alguns… Quantos?

MF – Cerca de sete mil em todo o país, incluindo Madeira e Açores.

ZAP – Como é que a comunicação funciona? Como é que um voluntário chega ao Vizinho Amigo e se sente parte de algo que é maior do que ele próprio?

MF – Tentamos sempre incluir o voluntário na família do Vizinho Amigo, para ele se sentir incluído, bem e que está a lutar por uma causa. Isso é essencial. Fazemos isso de várias maneiras. Há contacto constante com os voluntários pelas redes sociais, pelos e-mails e pela nossa comunidade Vizinho Amigo, no Facebook. A nossa grande dificuldade, em termos de logística, foi: como é que as pessoas dos grupos de risco vão saber da nossa existência? Muitas dessas pessoas não sabem mexer num telemóvel, não têm redes sociais… O que fizemos? Cartazes. Às portas das casas, de supermercados, espalhados pela comunidade. São, sem dúvida, a melhor forma de comunicar com elas.

ZAP – E resultaram.

MF – E resultaram. Começámos por ter uma reação muito positiva de alguns voluntários, que ajudavam quatro ou cinco pessoas por dia. E também resultaram porque, no primeiro confinamento, essas pessoas dos grupos de risco saíam muito menos de casa. Agora, no segundo confinamento, o Vizinho Amigo não vai compactuar com irresponsabilidades. Esperemos que a situação melhore mas temos de contar muito com a colaboração por parte das pessoas dos grupos de risco. O que estamos a assistir agora é a um grande crescimento na inscrição de voluntários, de pessoas que têm mais tempo livre; mas estamos igualmente a observar que há muitos mais voluntários do que pessoas de risco, no projeto. Já chegámos a este ponto: o problema não é o número de voluntários; o problema é as pessoas dos grupos de risco cumprirem, ficarem em casa e pedirem-nos ajuda. As pessoas dos grupos de risco sentem-se mais livres e saem de casa. E temos muitos voluntários prontos para ajudar.

ZAP – Têm reações por parte das pessoas dos grupos de risco?

MF – Sim. Sempre no Facebook. Há pessoas, curiosamente as mais velhas, que nos mandam mensagens muito grandes, que nos deixam quase testamentos, a agradecer.

ZAP – O que é mais importante para as pessoas dos grupos de risco: levar os bens ou fazer-lhes companhia?

MF – Acho que está intrínseco. A criação de amizade não era um objetivo principal mas o que temos observado ao longo do tempo é que, a partir do momento em que um voluntário vai a casa de alguém uma vez, muitos poucas vezes não vai numa segunda vez. A relação deixa de ser só voluntário-pessoa do grupo de risco, fica também uma relação de amizade, de comunicação frequente. Os voluntários ligam todos os dias às pessoas isoladas e a própria pessoa do grupo de risco começa a ganhar confiança, porque recebe chamadas e atenção por parte do voluntário, e começa a ligar. Há telefonemas de 40 ou 50 minutos entre pessoas de grupos de risco e voluntários. A nossa missão não é fazer companhia: é impedir que essas pessoas saiam de casa, ajudá-las; mas este da companhia também é um objetivo muito importante e que está incluído nessa ajuda.

ZAP – Quando os voluntários chegam, já trazem a consciência de que isso pode acontecer? Sentem que vão ter de dar muito do seu tempo?

MF – O Vizinho Amigo cresce por causa de um dado muito curioso: a pirâmide de Maslow e o sentido de realização que está lá. O que move e o que motiva o voluntário é esse sentido de realização. Quando se inscreve, já vem com muita vontade de ajudar e, quando ajuda, é ainda mais gratificante. No fundo, está a salvar uma vida.

ZAP – As pessoas que se voluntariam estão a estrear-se num projeto do género ou já têm experiência?

MF – Gostávamos de ter muitos mais dados sobre os nossos voluntários, mas temos a noção de que a maioria dos voluntários está envolvida frequentemente em projetos de voluntariado. Temos muita gente da Missão País, muita gente de organizações não governamentais, de associações como a Gap Year Portugal ou a AIESEC. Pessoas que têm espírito de iniciativa e que gostam de causas. Mas obviamente não descartamos pessoas inexperientes. O Vizinho Amigo é uma ótima forma de começar. E uma pandemia não é só uma altura de problemas, também é uma altura de oportunidades.

ZAP – As pessoas dos grupos de risco pagam todas as despesas ou o Vizinho Amigo já começou a ajudar financeiramente?

MF – Na maioria das vezes pagam tudo, as compras. O Vizinho Amigo não adianta qualquer dinheiro. E vai continuar a ser assim porque, se tentássemos ajudar monetariamente todas as pessoas que ajudamos, não chegaríamos a lado nenhum. Por outro lado, temos um cariz social. No Natal, por exemplo: comprámos cabazes de Natal para nove famílias. E só ajudamos famílias que temos a certeza de que passam dificuldades.

ZAP – O que vai acontecer nos próximos tempos? Vão aparecer mais pessoas a pedir ajuda ou mais voluntários?

MF – Espero que as pessoas dos grupos de risco fiquem em casa e nos peçam ajuda. Não faltam redes de voluntários para elas. O Vizinho Amigo é uma delas. O que temos visto, infelizmente, é a saída de mais gente, tenho visto trânsito que parece que estamos num dia normal. Não estamos.

ZAP – O que está a falhar para que, quase um ano depois, as pessoas estejam a sair de casa? Embora haja muitas respostas para ajudar.

MF – Somos um povo latino, de muitas emoções. Seguimos muito essas emoções. No primeiro confinamento havia muito medo espalhado, agora há mais informação sobre o vírus. E também estamos a seguir uma liderança que está a ser algo confusa. Poderia haver uma comunicação mais direta por parte de quem governa, para que as medidas possam ser mais claras. Sou adepto de fechar tudo, se for preciso.

ZAP – Não há um fator psicológico aí, também? Há pessoas, mesmo dentro dos grupos de risco, que saem de casa porque a cabeça já não aguenta?

MF – Concordo. Somos um povo que gosta de pessoas e temos uma temperatura agradável e sol no inverno. Toda a gente está cansada, eu incluído. Mas, por outro lado, temos de respeitar este período de confinamento. Ainda por cima, acho que este vai ser o último confinamento porque depois vamos começar a sentir os efeitos da vacina a partir de março ou abril.

ZAP – Imagina que tudo isto corre muito bem e que o Vizinho Amigo deixa de fazer sentido. O que fica para ti?

MF – Ainda nem entrei bem em mim, ainda não percebi qual o verdadeiro impacto do Vizinho Amigo na comunidade. Sou sempre uma pessoa de muitas ideias mas esta correu especialmente bem. Quando o Vizinho Amigo terminar, será um sinal muito bom. Atenção que o Vizinho Amigo pode reinventar-se. Ainda não decidimos. Quem sabe, poderemos ter outra missão. Mas, no período imediatamente após a pandemia, vamos parar porque toda a gente está a trabalhar muito e o cansaço aparece.

ZAP – Como é feita a inscrição no Vizinho Amigo?

MF – Os voluntários encontram facilmente um formulário, que demora dois minutos a ser preenchido. Depois recebe um e-mail com informações, recomendações e um cartaz. As pessoas dos grupos de risco podem pedir ajuda através do Facebook, do Instagram, dos nossos e-mails e estejam atentos aos muitos cartazes que vão aparecendo na rua. Estejam atentos e não hesitem em pedir ajuda, temos mesmo muitos voluntários com muita vontade.

ZAP – Como é a vida do Martim Ferreira longe do Vizinho Amigo?

MF – Dentro do associativismo, gosto de ter impacto. Já trabalhei no departamento financeiro da Gap Year Portugal e, se eu não tivesse passado pela Gap Year, não haveria Vizinho Amigo. Gosto muito de desporto, fui atleta do Sporting Clube de Portugal durante 12 anos. Ainda jogo andebol. Agora sofro muito porque não há desporto. Aguento uma ou duas semanas sem fazer desporto, mas depois fico a roer-me todo, é muito complicado. E estudo gestão no ISCTE. Vizinho Amigo, desporto, ISCTE: é a minha vida.


Ouvir a entrevista conjunta com Lisandra Rodrigues:

Nuno Teixeira, ZAP //

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