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“Deixe-me em paz, só quero morrer!” – o Carlos Alberto está mais a Sul nestes dias

Francisco Lobo / TNSJ

Virgílio Castelo e Francisca Sobrinho na peça ‘Sul’

Segundo e último espectáculo no Teatro Carlos Alberto sobre migrações. “Vamos fazer uma peça de época para falar do presente”.

A migração tem estado presente no Teatro Carlos Alberto, no Porto. Se O Salto abordava a emigração nos anos 70 do século passado, agora Sul aborda a imigração na actualidade. Com uma personagem comum nas duas peças.

Primeiro, tínhamos a questão da fuga ao país, a deserção à guerra colonial; agora aborda-se mais a forma como Portugal acolhe os imigrantes.

Desta vez, Michelle, uma rapariga francesa lusodescendente, vem a Portugal, contra a vontade da família, na tentativa de encontrar um homem que pode ser o seu avô biológico. Um avô que rejeita a presença daquela jovem desconhecida: “Deixe-me em paz, só quero morrer!” – ouvimos na primeira cena, durante o ensaio para a imprensa.

Além deste homem, cuja existência está rodeada de mistério, Michelle esbarra com a crua realidade de uma comunidade de migrantes do Sul do país. É “um drama familiar intergeracional sobre trauma, abandono e separações”, lê-se na sinopse de Sul.

Tiago Correia, autor e encenador, explica ao ZAP que esta peça, mais do que falar no tráfico humano, aborda as “feridas criadas pelas mudanças”, neste caso de país. E são feridas que “atravessam gerações”.

De que forma as novas gerações, emigrantes ou filhos de emigrantes portugueses, se relacionam com Portugal? Conhecem a história do país? Que medos e traumas existem?

Perguntas lançadas por Tiago, que avisa que começou a escrever (ou no mínimo a pensar) esta sequência, estas duas peças em 2021; ou seja, ainda antes de as migrações serem um assunto tão presente em Portugal e na Europa.

Embora esta peça, Sul, foi escrita apenas “há meia dúzia de meses” e por isso sim, encaixa muito na realidade. “É quase um truque: vamos fazer uma peça de época para falar do presente”.

Tiago Correia lembra dados recentes apresentados pela Polícia Judiciária: é uma “falácia” dizer que os imigrantes estão a aumentar a criminalidade.

Na verdade, a ideia foi outra: “De que forma estamos a aproveitar-nos dessas pessoas, dos imigrantes? Porque é isso que está a acontecer e é aí que esta peça vai parar”, explica o encenador.

O autor teve diversas parcerias, quer em Portugal, quer em França, para ter bases reais sobre emigrantes e imigrantes.

E apresentou outra perspectiva no espectáculo: “A de alguém que não é emigrante. Eu sou um privilegiado, homem, branco. Pensei: de que forma é que eu podia falar por eles? Na peça tudo se passa do lado do privilégio. É uma auto-crítica, se quiserem”.

Entre as duas peças, procuram abrir-se caminhos para uma reflexão mais ampla sobre os temas da memória (ou do esquecimento) e da volatilidade das relações humanas contemporâneas.

“Acho que andamos muito esquecidos. E parece haver um outro fenómeno: de não querer saber do passado. Porque o passado é um erro: a escravatura, o patriarcado… O passado é tudo aquilo que está errado na história”, justificou Tiago Correia, que acha que este pensamento é mais das novas gerações. Nas velhas gerações, a postura é outra: apagão. “Viveram determinadas coisas e esqueceram-se do que viveram”.

A nível técnico, há um ecrã ao fundo a mostrar em directo a imagem de uma câmara lateral, que está no palco. Parece que estamos num cinema. “Perfeito! Tem a ver com a forma como eu trabalho com os actores. Trabalhamos a uma escala grande para o teatro, mas também a uma escala micro, no que se passa entre os actores, olhos nos olhos. E isso não se vê no teatro. Aproximar das emoções, permitir estar mais próximos deste teatro íntimo”.

Com interpretação de Virgílio Castelo, Francisca Sobrinho e Francisco Pereira de Almeida, Sul estreia hoje, quinta-feira, no palco do Teatro Carlos Alberto. Estará em cena até 16 de Março.

Nuno Teixeira da Silva, ZAP //

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