Sífilis era vista como “castigo” aos europeus — mas a história pode ser bem diferente

(dr) Cleveland Art

Pode uma pintura de 1400 retratar um dos torturadores de Jesus com ‘nariz em sela’, um efeito comum da sífilis?

Acreditava-se que os exploradores europeus tinham trazido a sífilis das Américas, mas, na realidade, a doença poderia já estar no Velho Continente.

Que a chegada dos europeus ao Novo Mundo em 1492 levou a uma enorme mudança na paisagem tem sido amplamente aceite nos últimos 50 anos. De repente, uma troca transatlântica – milho por trigo, tomates por maçãs, tabaco por cavalos – significou que plantas e animais estavam a mover-se entre continentes pela primeira vez.

Aconteceu o mesmo com os patógenos, de acordo com o historiador Alfred W. Crosby e o seu influente livro “The Columbian Exchange”. Doenças como varíola e sarampo, trazidas para o Hemisfério Ocidental pelos invasores, logo mataram quase toda a população indígena.

Em troca, os europeus foram vítimas da sífilis, uma doença venérea que contraíram dos nativos. A ideia de Crosby sobre a troca de doenças era interessante e rendeu uma boa história, sugerindo que, com a chegada da sífilis à Europa, uma espécie de justiça tinha sido feita.

O único problema é que este cenário de sífilis está errado, de acordo com estudos em andamento de paleopatologistas, cientistas que estudam restos esqueléticos em busca de evidências de doenças.

Depois de décadas de trabalho meticuloso, os especialistas concluíram que a bactéria espiroqueta causadora da sífilis, Treponema pallidum, já existia na Europa muito antes de Colombo embarcar no seu navio e navegar para a Ilha de São Domingos.

Assim como restos de esqueletos, as pinturas mostram a vida como ela era. Mesmo os manuscritos, embora mais abertos à interpretação, podem revelar a verdade quando os leitores abrem as suas mentes para novas possibilidades.

Evidências de ossos e dentes

Num cemitério em West Sussex, no Reino Unido, arqueólogos descobriram o esqueleto de um jovem com danos no crânio, clavículas, braços e pernas – uma combinação típica da sífilis. Ele morreu no século VI.

Em St. Polten, na Áustria, um cemitério medieval contém os restos mortais de uma criança de seis anos com dentes deformados consistentes com um diagnóstico de treponematose, talvez um caso de sífilis congénita, quando a bactéria Treponema pallidum é passada de mãe para filho durante a gravidez ou parto.

Na Anatólia, no oeste da Turquia, o esqueleto de um adolescente revelou não apenas os mesmos incisivos deformados de St. Polten, mas também danos em todo o esqueleto abaixo da cabeça. O envolvimento de dentes e ossos no mesmo espécime, e principalmente o grande número de ossos afetados neste caso, aponta para sífilis. A vítima morreu no século XIII – algumas centenas de anos antes de Colombo zarpar.

A lista continua. Embora o número absoluto de casos não seja grande, eles continuam a aparecer. Algumas das evidências aparecem nos restos mortais de pessoas que viveram há mais de 2.000 anos.

Há uma questão pendente, no entanto. Ossos e dentes danificados parecem conter provas da sífilis pré-colombiana, mas existe a possibilidade de apontarem para outra forma da doença.

O Treponema pallidum aparece em várias estirpes. A subespécie que causa a sífilis é a mais mortal. Mas duas outras subespécies da bactéria causam doenças menos graves, embora ainda dolorosas e inestéticas, chamadas bejel (também conhecida como sífilis endémica) e bouba que geralmente não são transmitidas sexualmente. Hoje em dia todos os três podem ser tratados com antibióticos.

Então, como é que é possível distinguir entre as três subespécies e provar que a forma venérea sempre existiu na Europa?

Escritores e artistas gravaram outras evidências

Evidências documentais e artísticas podem ajudar a resolver a questão. De todos os patógenos conhecidos pela humanidade, apenas os treponemas produzem resultados tão divergentes com base no clima e na cultura, uma pista importante para encontrar evidências em manuscritos.

Esse facto explica a teoria de que as elites medievais sofriam mais severamente com a treponematose do que os camponeses. O seu estilo de vida rico teria-os protegido de infeções infantis que os seus inferiores sociais apanhavam na suas lotadas e insalubres casas. Mas essas doenças de infância teriam o benefício de desencadear alguma imunidade futura.

Se os membros da elite atingissem a maturidade sexual sem terem tido infeções mais leves enquanto cresciam, seriam altamente suscetíveis a contrair a doença pela primeira vez durante a relação sexual.

Uma ferida nos genitais contém uma enorme dose de bactérias infecciosas em comparação com as pequenas doses encontradas nas roupas partilhadas ou nas roupas de cama. Os camponeses que sofreram uma recorrência da doença enquanto adultos provavelmente poderiam evitá-la com sucesso por causa de sua imunidade anterior.

Além de morrerem jovens, as elites infetadas corriam o risco de transmitir sífilis congénita aos seus filhos, que muitas vezes se mostrava fatal para a próxima geração. Elites e os seus filhos morreram em números tão altos que algumas famílias nobres tiveram problemas para manter as suas linhagens, um ponto observado há muito tempo sem fazer uma conexão potencial com a sífilis.

Um membro da realeza que se acredita quase certamente ter morrido de sífilis foi o rei Eduardo IV da Inglaterra (1442-83). Um dos seus conselheiros escreveu que ele morreu de uma doença difícil de curar mesmo numa pessoa de menor estatuto, um comentário enigmático não entendido anteriormente pelos historiadores.

Mas a sua declaração encaixa-se perfeitamente na diferença entre sífilis venérea e endémica, evidência que sugere que ambas as doenças existiam na Inglaterra do século XV. Os sintomas do rei e a reputação de promiscuidade sexual ajudam a confirmar o diagnóstico.

As evidências da presença de sífilis no Velho Mundo também vêm da arte.

Os médicos sabem que a sífilis pode resultar em “nariz em sela”, no qual espiroquetas invadem o nariz de um paciente e fazem com que ele colapse de maneira distinta. Artistas medievais desde o século XII retratavam essa deformidade nos seus trabalhos.

A investigadora Marylynn Salmon, da Smith College, acredita que os artistas pretendiam mostrar doenças venéreas e não endémicas porque usam nariz de sela em representações de figuras pecaminosas, incluindo os homens que torturaram Cristo ou mataram bebés por ordem do rei Herodes.

Exemplos não faltam. Os historiadores ignoraram boas evidências porque acreditavam no chamado intercâmbio colombiano. No que diz respeito à sífilis, no entanto, essa estrutura intelectual agora parece ultrapassada.

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