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O segredo do “remédio para a alma” da Gronelândia

Poucas coisas no mundo nos deixam mais impressionados com a natureza do que dormir num bloco de gelo com 3 km de espessura, apoiado sobre uma camada de neve formada mais de um milhão de anos atrás.

O Camp Ice Cap, perto da cidade de Kangerlussuaq, no oeste da Gronelândia, oferece a extraordinária oportunidade de acampar por uma noite sobre o manto de gelo que cobre cerca de 80% da ilha. Uma experiência que costuma ser reservada apenas para fins de pesquisa ou expedições.

Mas esta não é a única experiência extraordinária de acampamento na Gronelândia. A maior ilha do mundo — com o seu manto de gelo (inóspito, na maior parte), mar frequentemente revolto e o maior predador terrestre do mundo, o urso polar — foi recentemente incluída no mundo dos acampamentos de luxo.

No acampamento Kiattua, a duas horas de barco da capital da Gronelândia, Nuuk, podemos entrar numa banheira de água quente para apreciar a vista do segundo sistema de fiordes mais longo do mundo, antes de comer uma refeição preparada numa cozinha ao ar livre e, por fim, repousar numa confortável tenda de luxo.

Já no sul da Gronelândia, pode pescar, sair em busca de alimentos na natureza, andar de caiaque ou caminhar ao lado de um imenso fiorde com vista para as montanhas no acampamento Tasermiut. Ali, a ideia é exatamente usar a natureza da ilha como remédio para a alma, admirar as paisagens deslumbrantes da região.

Longe de ser apenas uma tendência da indústria de turismo, estas experiências são parte de uma compreensão maior que está a acontecer na Gronelândia, sobre a importância da sua natureza única — uma combinação de cenários montanhosos espetaculares, fiordes profundos repletos de gelo e áreas selvagens intocadas — para a saúde, particularmente a saúde mental.

Muitas pesquisas mostram que a natureza melhora a nossa saúde mental e bem-estar, mas existe algo na Gronelândia que oferece uma perspectiva diferente.

A investigadora Naja Carina Steenholdt, da Universidade Syddansk, em Copenhaga, na Dinamarca, pesquisou a relação entre os gronelandeses e o bem-estar para a sua tese de doutoramento, focando-se particularmente no que chama de “Paradoxo da Gronelândia“.

A Gronelândia regista regularmente o maior índice de suicídios per capita de todo o mundo. Também enfrenta problemas sociais bem documentados, muitos deles relativos ao legado pós-colonial.

Mas, nesta ilha remota com apenas 56 mil habitantes, a maioria das pessoas inquiridas por Steenholdt relatou ter níveis altos ou muito altos de satisfação na vida. A cientista queria descobrir como, dadas as circunstâncias, as pessoas podiam ser  tão felizes. E ficou curiosa para saber o que constitui uma vida boa na Gronelândia.

Embora as relações sociais nas minúsculas cidades e aldeias sejam muito valorizadas, a pesquisa de Steenholdt concluiu que, de todos os fatores fundamentais para a qualidade de vida na Gronelândia, a natureza vem em primeiro lugar.

“Existe uma profunda compreensão de que a natureza vem antes de tudo. As pessoas respondem: ‘Sem a natureza, eu não teria família. Não conseguiria viver a minha vida. Consigo alimentos e energia da natureza’. Estas respostas foram comuns”, explica.

“Realmente surpreendi-me com a quantidade de pessoas que valoriza mais a natureza do que a família. Ela não é considerada apenas fonte de alimento; é tão fundamental que supera a família e o trabalho. É a pré-condição para uma boa vida”, acrescenta Steenholdt.

“Orgulho nacional e sobrevivência”

A compreensão e o respeito pela natureza são sentidos em todos os aspectos da vida na Gronelândia.

Para a investigadora de saúde pública Ingelise Olesen, do Centro de Pesquisas da Saúde da Gronelândia, em Nuuk, a complexidade da relação entre os gronelandeses e a natureza é o que a torna fundamental para a cultura, a comunidade e o estilo de vida.

“Não é apenas questão de dizer que a natureza cura tudo, e certamente não é, diante dos grandes desafios que temos por aqui”, afirma, referindo-se aos problemas com suicídio e saúde mental que afligem o país.

“Ter uma vista bonita não resolve nada. É mais sobre o significado da sua relação com a natureza. É como a natureza interage culturalmente, oferecendo uma sensação de orgulho nacional e independência”, explica Olesen.

“O valor está em como ela interage com a cultura, a comunidade e a história, como ela sustenta a alimentação, a caça e a sobrevivência.”

Um projeto-piloto recente levou um grupo de idosos e pessoas mais jovens para um acampamento remoto, para que eles se conectassem através da cultura, da natureza e das tradições. Nesse projeto, jovens e idosos trocaram conhecimentos, pescaram e prepararam peixes, acenderam fogueiras e cozinharam o jantar sobre rochas quentes.

Olesen conta que foi um grande sucesso. Os grupos partilharam conhecimento sobre tecnologia e tradições ancestrais, criando uma sensação de pertencimento que, antes, não existia.

Experimentar o lado curativo da natureza da Gronelândia como visitante é fácil. Chegar de avião à ilha já é uma experiência deslumbrante. São quilómetros e quilómetros de montanhas recortadas que se estendem à distância.

Outra mudança fundamental de perspectiva é que, como turista, é precisó aceitar que não está no controlo. Voos são cancelados, barcos não conseguem navegar devido aos fortes ventos e, até quando há bom tempo, pode não haver guias disponíveis se for temporada de caça.

Aqui, a natureza dita o comportamento, diferentemente da vida nas cidades modernas, onde a natureza é submetida às necessidades sociais.

O guia local Alibak Hard, ex-administrador de Kujataa — área no sul da Gronelândia que dá continuidade à cultura da criação de ovelhas que data da era viking, e hoje é Património Mundial da Unesco —, deixa claro que os gronelandeses veem a natureza com um olhar diferente.

“Para mim, sair para a natureza é como entrar na maior caverna humana do mundo“, diz, com um sorriso.

A diferença é que, em vez estar num lugar onde se desliga de tudo, a Gronelândia é um local de conexão e reconexão, de observar o seu lugar no mundo natural e o papel que ele desempenha na cultura, na alimentação e na sobrevivência.

O bem-estar, como mostrou a pesquisa de Steenholdt, está na natureza da Gronelândia.

ZAP // BBC

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