Houve um tempo na história da humanidade em que era malvisto demonstrar alegria. Aliás, a busca pela felicidade como conhecemos hoje é algo relativamente novo na nossa história.
Essa é uma das observações do historiador Peter N. Stearns, professor emérito da Universidade George Mason (EUA), especializado em história comparativa social e história das emoções e autor do livro História da Felicidade.
A busca pela felicidade
Até o início do século XVIII, em lugares como Reino Unido e nas suas colónias na América do Norte, os historiadores perceberam que as pessoas tinham orgulho de serem um pouco melancólicas.
Isto tinha a ver, em parte, com a lógica protestante, de ter consciência dos seus pecados e de se manter humilde perante os olhos de Deus.
Peter Stearns cita nas suas pesquisas o diário escrito por um chefe de família da época, que defendia que Deus, entre aspas, “não permitia alegria nem prazer, mas sim uma espécie de conduta melancólica e austera”.
Isso não quer dizer que as pessoas fossem infelizes — simplesmente não temos como julgar isso de modo imparcial, a partir dos padrões atuais. Até porque a felicidade, obviamente, é algo bastante subjetivo.
O que significa é que havia entre as pessoas da época a percepção de que era necessário pedir desculpas por momentos de felicidade, porque estes eram uma afronta a Deus, segundo Stearns.
Mas isso mudou radicalmente no século XVIII, a ponto de, na redação da Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776, a busca pela felicidade ter sido considerada um direito humano. A Constituição da França de 1793 também explicitou a ideia de que, entre aspas, “o objetivo da sociedade é a felicidade comum”.
Novas funções para os dentistas
“A nova ideia era que as pessoas não apenas deveriam ser felizes, mas tinham a responsabilidade de parecer felizes, produzindo algo como um novo imperativo de alegria”, diz Stearns em seu livro.
“O resultado aparecia tanto em conselhos por escrito quanto, ainda mais impressionante, numa nova disposição de sorrir amplamente e de esperar sorrisos em troca. As boas maneiras começaram a ser redefinidas no sentido de enfatizar o positivo.”
“Os romances — um género literário novo por si só — começaram a descrever as mulheres com sorrisos ‘encantadores’ ou ‘doces’, um claro sinal de novidade”, ele escreve.
“Em meados do século XVIII, surgiram novos tipos de dentistas em áreas urbanas de ambos os lados do Atlântico, ávidos por cuidar dos dentes em vez de os arrancar. Uma série de produtos inovadores, incluindo palitos e escovas de dentes, foi introduzida para preservar os sorrisos, e foram projetados auxílios artificiais, como o batom, para destacar a brancura dos dentes. O ato de sorrir demonstrava que a pessoa estava a acompanhar os mais recentes produtos de consumo, além de exibir o tipo certo de emoção.”
Mas o que levou a uma mudança tão grande de perspectiva, causando a exaltação da felicidade e do sorriso? Existem explicações, mas também mistério, segundo Peter Stearns.
“Sabemos parte da resposta. Houve, obviamente, uma enorme mudança no clima intelectual nas sociedades ocidentais, associada ao Iluminismo. Os intelectuais tornaram-se mais otimistas. Eles ficaram mais focados neste mundo, em vez de numa aspiração tão religiosa. Então a mudança no contexto cultural estava intimamente ligada à ascensão de um interesse maior numa expectativa de felicidade.”
O aumento no conforto físico e na prosperidade das classes sociais mais altas, bem como períodos de trégua de epidemias e pragas, provavelmente também despertaram uma sensação maior de otimismo.
Obsessão com a felicidade?
Ao mesmo tempo, a busca pela felicidade entrincheirou-se de tal modo nas sociedades ocidentais que, na visão de Stearns, criou uma obsessão e uma dificuldade em lidar com a tristeza.
“Certamente há um aspecto do interesse moderno na felicidade que provavelmente nos tornou intolerante à tristeza. Há alguns estudos, por exemplo, que mostram que não lidamos bem com crianças que estão tristes porque queremos que as crianças sejam felizes. Então eu acho que, francamente, há um problema nisso”, refere.
Há padrões semelhantes no elo entre a felicidade e o amor romântico. À medida que a felicidade se tornou um objetivo social, as manifestações culturais – de romances a canções e, mais adiante, filmes — passaram a exaltar o amor romântico, baseado no casamento e nos relacionamentos, como um caminho para ser feliz.
Do mesmo modo, porém, surgiram expectativas irreais a respeito disso, na visão de Stearns.
“Por que queremos finais felizes no que lemos? Acho que é provavelmente verdade que ficamos insatisfeitos com histórias que não tenham final feliz. Não acho que isso seja totalmente saudável. Então tentar encontrar um equilíbrio entre expectativas e realidade é outra parte complexa desse tipo de análise.”
Nómadas eram mais felizes?
Um ponto que tem despertado discussões entre historiadores é que os seres humanos podem ter perdido felicidade durante uma fase crucial da sua evolução: quando deixaram de ser nómadas e começaram a criar sociedades sedentárias.
É claro que não temos como perguntar a um caçador-coletor daquela época se ele era mais feliz do que somos hoje, mas os historiadores citam alguns pontos objetivos dessa transição.
Ao deixar a caça, muita gente passou a ter uma alimentação menos variada. As jornadas de trabalho ficaram mais longas. Ao viver em sociedade, as pessoas ficaram mais suscetíveis a epidemias e a guerras. A desigualdade entre diferentes classes sociais começou a ganhar forma.
Para Peter Stearns, uma das questões principais a ser discutidas no contexto atual é o espírito de coletividade dos caçadores-coletores. “Eles tinham uma grande quantidade de solidariedade grupal”, diz Stearns à BBC News Brasil.
“O que não quer dizer que não havia tensões, mas eles realmente dependiam uns dos outros. E acho que há muitos indicativos de que estruturas comunitárias melhoram a felicidade. E um dos desafios da felicidade hoje é que, para muita gente, as estruturas comunitárias estão enfraquecidas”, aponta Stearns.
“Em contrapartida, não podemos voltar a esse nível. Eles (caçadores-coletores) não tinham os nossos confortos, nem os mesmos níveis de saúde que temos. Não há por que fingir que conseguiríamos voltar (no tempo). Então precisamos encontrar o nosso próprio equilíbrio que funcione num contexto moderno”.
ZAP // BBC