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O Santo Sudário não se explica com simulações digitais

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// Dianelos Georgoudis/ Wikimedia

A hipótese de Cícero Moraes ignora dados empíricos cruciais. Transformar a imagem do Santo Sudário (Síndone de Turim) numa simulação gráfica, é ignorar a ciência.

Em 2025, foi divulgada uma proposta de Cícero Moraes segundo a qual a imagem do Santo Sudário (mais corretamente chamado de Síndone de Turim) teria sido produzida por um baixo-relevo, reconstruido através de software tridimensional de código aberto.

O trabalho, publicado na revista científica Archaeometry, teve grande difusão mediática, mas levanta sérias reservas quanto à sua validade científica.

Os investigadores do Sudário de Oviedo, Presno, Miñarro e Peinado, que atualmente estão a elaborar uma resposta académica mais ampla sobre esta questão, acrescentam ainda que:

O próprio Moraes recorre a um software de animação digital (Blender), que não está concebido para simular com precisão física a interação entre um corpo humano e um tecido real. Não define propriedades essenciais como densidade, elasticidade ou absorção do linho, nem considera cenários forenses como a presença prévia de sangue. Isto converte a sua simulação num recurso visual ilustrativo e não numa prova científica.

A hipótese do baixo-relevo já havia sido explorada e descartada em estudos anteriores, por se revelar incapaz de reproduzir simultaneamente a superficialidade nanométrica da imagem, a ausência total de pigmentos e a preservação intacta de manchas de sangue humano, documentadas desde 1978 pelo STURP (Shroud of Turin Research Project) através de microscopia e imunologia.

Estudos anatómicos demonstraram que o nível de precisão observado na figura do Santo Sudário, como a inclinação da cabeça, a rigidez cadavérica, as pernas fletidas e a disposição cruzada das mãos, ultrapassa em muito o que era habitual na arte medieval. Não existe nessa época qualquer obra escultórica comparável, nem em técnica nem em iconografia.

A datação por carbono-14 realizada em 1988 foi amplamente questionada em artigos revistos por pares (Casabianca et al., 2019), uma vez que a amostra foi retirada de uma zona reparada com fibras modernas. Métodos recentes como o WAXS (Wide-Angle X-ray Scattering) dataram o tecido em torno do século I d.C.

Moraes incorre num erro conceptual ao comparar a formação da imagem do Santo Sudário (cuja natureza não é de contacto), com as manchas do Sudário de Oviedo, que resultam efetivamente de contacto direto. Equiparar ambos os processos sem distinções, conduz a conclusões erradas.

Vatican News

Fotografia em negativo do Santo Sudário (Síndone de Turim)

Embora a arte do Gótico tardio tenha revelado avanços no naturalismo, a figura representada no Santo Sudário, pela frontalidade, nudez integral, simetria e precisão anatómica, corresponde mais ao cânone renascentista ou até académico. No contexto medieval, uma obra com estas características, teria sido absolutamente excecional e insólita.

Também Emanuela Marinelli, nos artigos “Sindone formata da un bassorilievo? Il ritorno di una bufala” (La Nuova Bussola Quotidiana, 2025), sublinhou que a abordagem de Cícero Moraes reduz o Santo Sudário a uma simulação geométrica, ignorando décadas de investigação multidisciplinar.

Conclusão

O Santo Sudário continua a ser um objeto enigmático e fascinante, que interpela a ciência de forma multidisciplinar. Qualquer abordagem séria deve ser capaz de integrar estes níveis de análise numa estrutura metodológica coerente, sujeita a verificação independente e reprodução experimental.

As simulações digitais, embora úteis como recurso ilustrativo, não possuem a densidade ontológica nem o rigor empírico necessário para sustentar conclusões consistentes.

A formação da imagem não pode ser explicada de modo plausível se não forem considerados, de forma simultânea e articulada, fenómenos como a oxidação superficial nanométrica da celulose e a presença de sangue humano comprovado por métodos imunológicos. Qualquer hipótese que isole apenas um destes aspetos, permanece incompleta e especulativa a nível científico.

Fotografia em negativo do Santo Sudário (Síndone de Turim), detalhe do rosto

A questão central não reside na possibilidade de reproduzir parcialmente um contorno com ferramentas digitais, mas na capacidade de formular um modelo teórico e abrangente, que explique, sem contradições, a totalidade dos dados empíricos.

É nesta dimensão que se afirma a credibilidade científica. Não na aparência persuasiva de uma reconstrução gráfica, mas na consistência metodológica, na capacidade de reprodução experimental e na abertura ao escrutínio crítico da comunidade científica.

Na minha perspetiva, o Santo Sudário desafia a ciência a superar reducionismos simplistas e a adotar um verdadeiro paradigma interdisciplinar. Só assim será possível distinguir entre construções mediáticas de efeito efémero e hipóteses científicas genuinamente explicativas.

Reduzir o Santo Sudário a um exercício digital, é claramente abdicar do rigor científico. O seu estudo exige não apenas técnicas, mas sobretudo método, interdisciplinaridade e responsabilidade epistemológica.

António Ribeiro Ferraz, ZAP //

António Ribeiro Ferraz
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3 Comments

  1. Boa tarde. Recomendo ao Zap procurar os envolvidos na reportagem, senão acontece isso aí… um material que desinforma. Eu refutei esses questões relacionadas aos “mistérios” na minha resposta ao Centro Internazionale di Studi della Sindone (CISS). Está disponível nesse link: https://www.researchgate.net/publication/395338103_My_Public_Response_to_the_Centro_Internazionale_di_Studi_della_Sindone_CISS_Regarding_the_Study_in_Archaeometry_2025 Espero que o repórter honre a sua profissão e coloque o link disponível no corpo principal, ou me procure para esclarecer acerca do que foi exposto. Um grande abraço.

    • Caro professor Cícero de Moraes,
      Obrigado pelo seu comentário, que muito nos honra. Temos acompanhado com atenção o seu trabalho.
      Este artigo é da autoria do professor António Ribeiro Ferraz, especialista em Estudos Sindonológicos, que partilhou o seu contributo para a discussão deste tema como autor convidado do ZAP. Nessa qualidade, não tem cabimento a figura do contraditório.
      Iremos dar a melhor atenção ao estudo que indicou, e procurar o seu esclarecimento.
      Um forte abraço.

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