Ver o dia a nascer como de fosse o princípio do mundo é coisa para acontecer mais do que uma vez em Santo Antão, principalmente se o objectivo for uma bela caminhada.
Plantada no mar à frente das outras nove, a mais ocidental ilha do Barlavento cabo-verdiano é também a mais montanhosa de todo o arquipélago, desenhada por caminhos de pedra que, desde sempre, unem as localidades vizinhas umas às outras. Ou melhor, comunidades – é assim que se designam as povoações, e isso diz muito.
Agora que crescem as estradas com espaço para quatro rodas, a rede de caminhos vicinais – chamam-se assim mesmo, a sublinhar a vizinhança – continua a ser crucial para a vida de todos os dias, para levar e trazer provisões, e para fascinar amantes das grandes caminhadas de todo o mundo.
O turismo de hiking e trekking, sustentável e em comunhão com a natureza, é um catalisador do desenvolvimento de Santo Antão, fazendo crescer projectos de alojamento e gastronomia locais apoiados nos sabores e nos saberes tradicionais, estimulando a agricultura e a transformação artesanal de produtos da terra, contrariando a emigração e promovendo a autonomia das comunidades.
Com mapeamento e recuperação em curso pelo Projeto RAÍZES (Redes Locais para o Turismo Sustentável e Inclusivo em Santo Antão), que junta sociedade civil e autoridades locais num plano despoletado pela portuguesa ADPM – Associação de Defesa do Património de Mértola e financiado pelo Instituto Camões e pela União Europeia, essa rede de caminhos é uma espécie de mapa da felicidade, a percorrer com ou sem guia local, e com variados graus de dificuldade (que convém conhecer).
Partindo de Porto Novo, sede de concelho populosa e culturalmente rica – sobretudo quando a febre de Kola Sanjon (festas de S. João) invade as ruas, em Junho – há que subir a velha estrada de Corda, para lá da cordilheira montanhosa onde só pedras, acácias e cabras parecem crescer, em direcção ao Parque Natural da Cova, Ribeira da Torre e Paul.
Em Cova, da orla da cratera do vulcão adormecido com vista para o puzzle de terrenos agrícolas e casas tradicionais que cobre o vale, parte um dos caminhos vicinais mais extraordinários da ilha.
São quase 13 quilómetros e cinco horas a ziguezaguear montanha abaixo até Vila das Pombas, mas valem cada músculo dorido do dia seguinte e pode-se recuperar em beleza na Casa Maracujá, em Cabo da Ribeira, onde além de alojamento se reinventam sabores tradicionais e se promovem os saberes locais.
A morabeza cabo-verdiana é forte em Santo Antão onde essa arte de bem receber e bem tratar toma forma de grogue e pontche, as bebidas tradicionais oferecidas à laia de aperto de mão em cada casa que visitamos.
Vanderlei Rocha produz o melhor que nos foi dado provar, feito em trapiche tradicional (um artefacto de madeira puxado por bois), com cana de açúcar cultivada ali mesmo como tudo o que alimenta as deliciosas refeições da sua Casa Branca, alojamento familiar em Ribeira da Cruz.
Em Fontaínhas, perto de Ponta do Sol, a comunidade que olha para o mar do cimo de falésias de cortar a respiração e está recorrentemente no top 5 das paisagens rurais mais belas do mundo, começa outro desafiante caminho vicinal – aquele que dá acesso exclusivo à povoação vizinha, o Corvo, e depois a Formiguinhas e, ainda mais além, a Cruzinha, onde se chega ao fim de valentes horas de subidas e descidas a pé e a pique.
No extremo oposto da ilha, Tarrafal de Monte Trigo é o destino perfeito para descansar das grandes caminhadas, mas para lá chegar há que seguir o trilho de pedra que encaracola montanha abaixo até à praia e depois continua a serpentear pela falésia até Monte Trigo, uma das comunidades mais remotas da ilha.
Depois de 4 horas de caminhada paralela ao mar encontramos um campo de futebol e uma estalagem que serve peixe do mais fresco que há – pescado por quem o come, se quiser, que a pesca desportiva é outro ponto forte da região.
O local oferece ainda alojamento para turismo de terraço, modalidade muito praticada nesta ilha de noites quentes e sem predadores, onde até o mosquito rareia.
Os preços, muito acessíveis, incluem colchão, uso das infraestruturas na casa mãe (onde também há quartos tradicionais) e um bom pequeno almoço – experimente a cachupa, o tradicional cozido rico de milho e feijões cozinhado de novo no dia a seguir, com ovo estrelado e linguiça ou peixe frito.
Ao final da tarde, quando a comunidade se reúne para dois dedos de conversa e um jogo de futebol, a imensa praia de areia negra e águas quentes de Tarrafal de Monte Trigo é um postal vivo com pôr do sol.