Poundbury, a “cidade utópica” planeada pelo rei Carlos III

Andy Rain / EPA

Rei Carlos III

Saber como é que um monarca pensa não é uma tarefa fácil, mas no caso do rei Carlos III existe um lugar que pode oferecer algumas pistas.

Um comboio que sai da estação de Waterloo, em Londres, chega em duas horas e meia a Dorchester, no condado de Dorset, no sudoeste de Inglaterra. De lá, são mais dez minutos de autocarro até chegar ao nosso destino.

O lugar parece um tributo à arquitetura tradicional inglesa. Edifícios e casas em estilo vitoriano, georgiano e neoclássico recebem os visitantes.

Assim é Poundbury, a cidade experimental que o rei projetou e onde, segundo especialistas, é possível encontrar pistas sobre as principais preocupações do monarca. Como remete às questões da Coroa, Poundbury divide opiniões.

“Ou se ama ou se odeia”, resume Matthew Carmona, professor de design urbano da University College London (UCL), no Reino Unido. Embora a sua arquitetura seja tradicional, a casa mais antiga aqui é de 1993.

Foi nesse ano que Poundbury nasceu, inspirada nas ideias do então príncipe sobre como deveriam ser as cidades modernas: tradicionais em estilo, sustentáveis, caminháveis ​​e capazes de integrar negócios, propriedades privadas e habitação social no mesmo espaço.

Trinta anos depois, nas vésperas da coroação do rei, a BBC visitou Poundbury para ver como vivem seus habitantes e saber o que pensam do homem que está prestes a ser coroado.

“Amor por Poundbury”

Françoise Ha chegou a Poundbury há seis anos — e faz parte dos mais de 4 mil moradores da cidade. Outras 2 mil pessoas vão trabalhar lá todos os dias.

“Falaram deste lugar, viemos e sentimos uma energia muito boa. Caminhar é agradável”, conta à BBC. Ha trabalha numa clínica de bem-estar e é representante de moradores. Ela diz que “ama” Poundbury.

“Temos três filhos e queríamos um lugar seguro. O envolvimento do rei fez-nos pensar que seria um sucesso”, diz. A clínica dela fica perto de um ponto icónico, a Praça da Rainha Mãe, que homenageia Isabel Bowes-Lyon, avó de Charles e mãe de Isabel II.

Projetada para ser percorrida a pé, Poundbury tem carros por toda parte e poucos pedestres — pelo menos na quinta-feira em que a BBC esteve lá.

“É curioso que haja tantos carros. Deve ser devido às pessoas que vêm trabalhar, porque pela manhã há muito trânsito. Talvez seja algo para rever no futuro”, diz Ha.

Os princípios urbanos do rei

Poundbury é a materialização do livro “A Vision of Britain: A Personal View of Architecture”, que Charles escreveu na década de 1980. Na obra, ele deixou registado como imaginava as cidades modernas do Reino Unido.

“Comunidades em vez de cidades-dormitório“, explica Jason Bowerman, da equipa de gestão de Poundbury, à BBC.

Os padrões com os quais Charles queria romper eram os projetos urbanísticos britânicos das últimas décadas do século passado. “Lugares residenciais para dormir, com poucos serviços e lazer para os moradores ao redor”, como descreve Carmona.

Perante isso, “Poundbury quer que os seus habitantes dependam menos do carro. Também tem habitações sociais acessíveis integradas, que não se consegue distinguir das propriedades privadas, e oferece oportunidades para trabalhar e áreas para a vida em comunidade”, explica Bowerman.

Claro que tudo isto tem um preço. Em comparação com outros projetos da época e na área, “morar em Poundbury é significativamente mais caro”, observa Carmona.

Condições rigorosas

Poundbury pertence ao Ducado da Cornualha, território da Coroa herdado pelo filho primogénito do monarca. Até setembro de 2022, quando a rainha Isabel II morreu, pertencia a Charles. Agora que ele é rei, o príncipe William está no comando.

As regras podem ser rígidas, e muitos procedimentos requerem a aprovação do conselho e do Ducado.

“Você não pode mudar a cor das portas, não pode instalar antenas parabólicas e não pode mudar as janelas”, explica Ha, que teve que assinar um documento de 17 páginas concordando com várias regras quando se mudou.

Não há sinais de trânsito aqui. As ruas foram projetadas com poucas retas e muitos obstáculos para que o motorista tenha que controlar a velocidade e proteger o pedestre.

Este ponto tem sido problemático. “O Ducado recebeu reclamações sobre atravessar a Praça da Rainha Mãe à noite. É a coisa mais assustadora para os pedestres”, diz à BBC Fran Leaper, editora da revista Poundbury e moradora da cidade há 18 anos.

Sucesso, fracasso ou capricho?

É difícil de encontrar moradores descontentes em Poundbury. A maioria elogia a sua beleza e tranquilidade, para além dos problemas comuns que toda as cidades britânicas enfrentam.

“Às vezes temos [problemas com] drogas e algum comportamento antissocial, mas o nível das nossas casas de assistência social é muito bom”, diz Leaper.

Ha admite que um dos desafios de Poundbury é incluir melhor as diversas famílias que chegam e aumentar o espírito comunitário.

“Antes predominavam os idosos, mas estão a chegar famílias com crianças e adolescentes. Precisamos de espaços para jovens e para aqueles que têm menos recursos”, afirma.

Poundbury tem uma única escola para crianças entre os cinco e nove anos. Os mais velhos, por enquanto, estudam em Dorchester, a dez minutos de autocarro.

Outro desafio é a visibilidade dos negócios, já que estão acoplados a residências e sofrem restrições em relação à sinalização.

“Você tem que saber onde fica a loja que quer ir, porque você passa ao lado e não percebe”, diz Ha.

Mais bem-sucedida é a gestão energética de Poundbury, aquecida com gás 100% renovável gerado pela Rainbarrow Farm a partir de cultivos sustentáveis, diz o Ducado.

Mas o projeto não é isento de críticas. Em geral, muitos arquitetos criticam a sua estética anacrónica. Também há dúvidas sobre o seu potencial para se tornar o modelo que Charles sonhou.

“Exige investimento de longo prazo, e a maioria dos desenvolvedores imobiliários quer lucros imediatos”, observa Carmona.

Laura Clancy, socióloga especialista no estudo das “elites” e da monarquia na Universidade de Lancaster, no Reino Unido, acredita que Poundbury é uma “utopia” difícil de alcançar e que mostra “uma certa desconexão de Charles com a realidade dada a sua posição privilegiada”.

“A sua rejeição da arquitetura moderna e dos grandes edifícios, tendo em vista que foram construídos para facilitar o acesso à habitação durante crises económicas, é prova disso”, afirma Clancy à BBC.

Ela reconhece, no entanto, que Poundbury contém uma mensagem política que denota as preocupações do monarca em relação ao meio ambiente, à sustentabilidade e ao bem-estar pessoal, embora também revele que concebe um Reino Unido no qual “a monarquia continua a ser protagonista”.

“Pelo menos conhecemos a posição de Charles sobre essas questões. O mesmo não podemos dizer de Isabel II, que nunca ninguém soube como ela pensava”, conclui a especialista.

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