O acordo militar entre Rússia e Angola é o mais ambicioso dos assinados pelos russos com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). O que terá de tão especial?
A Rússia tem acordos militares com os cinco países lusófonos em África, sendo o são-tomense o mais recente e o acordo com Angola (de longe) o mais ambicioso.
Como explicou, à Lusa, o coordenador do Observatório de Segurança e Defesa da SEDES, o major-general João Vieira Borges, Angola é, de entre os países africanos lusófonos, o que assinou com Moscovo o plano de cooperação militar e policial mais extenso e profundo.
No entanto, recente aproximação entre Luanda e Washington terá deixado a Rússia em “estado de alerta”.
O plano de cooperação anexado ao acordo de cooperação militar, técnico-militar e policial entre a Rússia e Angola para os anos 2014-2020 – cujos programas individuais só terminam quando concluídos, podendo estender-se para lá do prazo de vigência do plano – chega a prever a construção de fábricas de armamento com patente russa em território angolano.
Esse programa previa o fornecimento de armamento aos três ramos das forças armadas angolanas, incluindo aviões de combate, vigilância e treino, mísseis e outras armas sensíveis à força aérea angolana; navios de patrulha à marinha ou construção de uma fábrica de artilharia e outra de armas ligeiras, modernização de blindados, e cedência de armas ligeiras ao exército e polícia angolanos.
Por outro lado, o principal parceiro africano da Rússia na exploração espacial tem sido Angola, depois de alguns projetos de cooperação com a África do Sul, como o projeto de vigilância por satélite KONDOR-E da década de 2010, terem sido “marcados pela desconfiança”, segundo um estudo do Stockholm Centre for Eastern European Studies (SCEEUS) de janeiro de 2024.
Esta sexta-feira, também à Lusa, o investigador Fernando Jorge Cardoso tinha considerado que o principal objetivo da Rússia, com estes acordos, é demonstrar também é capaz de ter influência no Atlântico”, o “mar principal” da NATO.
Ora, Angola tem um vasta extensão de costa virada para o Oceano Atlântico, que certamente agrada aos russos.
Portugal deve preocupar-se?
A assinatura de acordos entre a Rússia e os PALOP remonta praticamente ao período das independências, mas as declarações da porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Maria Zakharova, na passada quarta-feira, antecipam que se multipliquem nos próximos tempos, prevê João Vieira Borges.
“[Quando a porta-voz do MNE russo diz que Portugal tem tido uma] postura ofensiva relativamente à Rússia, e que estamos no ponto mais baixo das relações diplomáticas entre os dois países”, foi o mesmo que dizer que “estamos agora em condições para entrarmos no espaço de influência de Portugal, designadamente nos PALOP”, afirmou o general, em declarações à Lusa.
“Eu interpretei aquilo também nesse sentido; não foi só [o desabafo de] um Calimero, antes pelo contrário, foi dizer que ‘Portugal está completamente na esfera do Ocidente, designadamente de influência dos Estados Unidos e da NATO e, portanto, passou a ser um país com que nós [Rússia] não contamos; e a partir daí podemos fazer o que bem entendemos, seja onde for‘”, acrescentou.
Como? Através da materialização de “outros acordos com outros países africanos de expressão portuguesa”, concretizou Vieira Borges.
Os próximos alvos mais expectáveis de Moscovo, para a assinatura de acordos militares, segundo o especialista, serão Moçambique e Guiné-Bissau, uma vez que
Com Moçambique
Com Moçambique, a Rússia assinou nos últimos anos vários acordos militares, um de proteção mútua de informações classificadas, em agosto de 2019, e outro de procedimentos simplificados para a entrada de navios de guerra russos em portos moçambicanos, em abril de 2018, seguido de um memorando de cooperação naval um ano depois.
Estão todos em vigor, mas, segundo analistas internacionais, Moscovo persegue há anos o sonho de instalar uma base naval no porto de Nacala e esteve perto de o conseguir, na sequência do escândalo das dívidas ocultas em 2018.
Pouco depois, Moscovo enviou para Moçambique o grupo paramilitar Wagner para combater a al-Shabab em Cabo Delgado, numa operação efémera, que se saldou por um fracasso dos mercenários russos.
Com a Guiné-Bissau
Também a Guiné-Bissau, para além do perdão da dívida na ordem dos 26 milhões de euros, anunciado pelo Governo russo em março último, aparece nos registos oficiais russos como signatária, em novembro de 2018, de um acordo de cooperação técnico-militar.
Este acordo distingue-se significativamente do agora assinado por São Tomé, não prevendo qualquer “cooperação” ou entendimentos “no quadro de organizações e fóruns internacionais sobre questões fundamentais de segurança e estabilidade internacionais”.
Ao invés, o acordo guineense resume-se ao “fornecimento de armas, equipamento militar e outros produtos militares”; “prestação de serviços no domínio da cooperação técnico-militar”; “destacamento de especialistas para apoiar a execução de programas conjuntos”; e “formação de pessoal”; entre outros.
A Guiné-Bissau ausentou-se do hemiciclo da Assembleia-Geral das Nações Unidas nas votações, em março de 2022 e em fevereiro de 2023, das duas resoluções de condenação da invasão russa da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022.
Para além disso, fez-se representar ao nível do chefe de Estado na última cimeira Rússia-África, em São Petersburgo, no verão passado.
Só outro Presidente lusófono foi também a São Petersburgo no final de julho de 2023, Filipe Nyusi, de Moçambique, país que – à semelhança de Angola – se absteve em ambas as votações nas Nações Unidas.
Com Cabo Verde
Finalmente, Cabo Verde, que como São Tomé votou favoravelmente a condenação da invasão russa da Ucrânia, assinou em junho de 2018 com Moscovo um procedimento simplificado para a entrada de navios de guerra russos no seu mar territorial e nas águas interiores, que prevê a acostagem de navios de guerra russos nos portos cabo-verdianos, reparação naval, entre outros aspetos relacionados.
Praia e Moscovo assinaram ainda, em novembro de 2000, um acordo de cooperação técnico-militar de natureza semelhante ao da Guiné-Bissau, assinado mais de uma década e meia depois.
ZAP // Lusa