As informações contidas nas caixas negras do avião que caiu na sexta-feira em São Paulo, provocando 62 mortes, já foram recuperadas pelos técnicos responsáveis pela investigação. Testemunhas ouvidas pela BBC contam como viram a aeronave despenhar-se.
As duas caixas negras do avião que caiu em Vinhedo, São Paulo — uma que regista a voz com conversas na cabine e outra que grava dados com todas as informações do voo — foram resgatadas na noite de sexta-feira e enviadas no sábado para um laboratório em Brasília, anunciou este domingo a Força Aérea Brasileira (FAB).
“O trabalho está apenas a começar. Os dados foram obtidos e validados e agora temos que transformar essa imensa quantidade de dados em informações úteis”, disse o brigadeiro general Marcelo Moreno, diretor do Centro de Pesquisa e Prevenção de Acidentes de Aviação da FAB.
O militar não deu informações prometeu entregar “no prazo até 30 dias” um primeiro relatório preliminar com os dados obtidos, que podem esclarecer muito do que aconteceu com o avião da companhia aérea Voepass.
Segundo Marcelo Moreno, é ainda prematuro comentar as diferentes hipóteses que os especialistas têm apontado sobre as causas do acidente, a principal delas sobre a possível acumulação de gelo nas asas da aeronave, o que explicaria a sua reviravolta no ar.
“Neste momento não podemos dizer se isso foi decisivo ou não”, afirmou o militar, que esclareceu que a aeronave possuía dispositivos para evitar a formação de gelo.
O avião acidentado, um bimotor modelo ATR-72-500, de fabrico francês, fazia o trajeto entre a cidade de Cascavel e São Paulo, com 58 passageiros e quatro tripulantes a bordo, e caiu quando faltavam cerca de 80 quilómetros para chegar ao destino.
Entre as vítimas encontrava-se Gracinda Silva, professora universitária portuguesa que vivia no Brasil há vários anos, e que seguia no avião com o marido, com quem estava casada há 25 anos. O casal deixa três filhos.
Uma equipa de reportagem da BBC, que se deslocou ao local, ouviu os relatos dos moradores que presenciaram a queda.
Parecia um avião de papel e caiu
“Eu vi o avião, parecia um papel. Era nítido que o piloto tinha perdido o controle e que alguma coisa má podia acontecer. E, no fim, o avião parecia realmente um papel e caiu. Foi bem perto do bairro onde moro. Assim que ele caiu, só subiu o fumo e ficou aquele silêncio”.
Foi desta forma que Letícia, estudante de administração, de 25 anos, contou ter visto a queda do avião.
Letícia conta que estava dentro de casa quando a aeronave “fez um barulho alto” ao passar pela região. Inicialmente, a estudante pensou que se tratava de aeronaves de pequeno porte a fazer manobras, mas o ruído começou a ficar cada vez mais alto.
“Eu estava a preparar-me para sair quando ouvi um barulho muito estranho, e ouvi o meu vizinho da frente a gritar: vai cair o avião”, relata.
Antes de se despenhar até o solo, o avião sobrevoou a região durante três ou quatro minutos, conta Letícia.
“Até que foi um longo tempo porque eu estava na altura a pedir um Uber. Faltavam quatro minutos e foi o tempo que a motorista demorou a chegar. O barulho já existia, mas o avião estava entre as nuvens. Estava bastante nublado”, lembra Letícia. “Quando o avião sai das nuvens, cai“.
A estudante conta que entrou em estado de choque assim que o acidente ocorreu, e que ficou tão nervosa que não conseguiu usar o telemóvel para gravar o que estava a acontecer.
“Na altura, fiquei a tremer. Não estava a acreditar no que estava a acontecer. Acho que é o caso mais chocante que já aconteceu na minha vida”, conta Letícia.
A passar por cima de casa
Outra das testemunhas ouvidas pela BBC, Edivaldo, comerciante de 67 anos, estava a voltar para casa após fazer compras no supermercado quando viu a aeronave na sua trajetória fatal.
“Eu vi o avião a passar por cima da minha casa. Ele deu uma primeira pirueta e, na segunda desceu direto e caiu em cima do morro. Não deu para ver mais nada. Só vi fumo subindo bem rápido”, recorda.
O comerciante conta que, logo após a queda, o ambiente na cidade mudou de forma drástica. Enquanto algumas pessoas gritavam de desespero, outras correram para o local do acidente, enquanto a polícia tentava isolar os destroços em chamas da aeronave.
Segundo Edivaldo, o piloto fez uma manobra para se desviar de fábricas e áreas com maior densidade de residências para evitar um desastre ainda maior. Com sucesso, uma vez que não houve feridos registados entre as pessoas que se encontravam no solo
“Se o avião caísse numa fábrica, haveria lá mais de cem funcionários”, conta Edivaldo. “O piloto foi inteligente. Há uma fábrica de colchões, de ferramentas, de cerveja, alumínio. Eu acho que ele se desviou”.
Corpos no chão, pessoas em fogo
João, mecânico de 21 anos, conta que estava a almoçar quando ouviu ruídos muito altos. Pensou que fossem causados por aviões de um show de acrobacias aéreas.
“Vim à janela e vi o avião a cair. Peguei na minha mota e segui o fumo, em direção ao local onde tinha caído. Quando lá cheguei lá, a dona da casa em frente ao local da queda já estava desesperada. Aí já vi as pessoas no chão, os corpos. Foi triste mesmo, causou-me impacto”, conta João.
João conta que, desde que começou a ouvir os ruídos até ao momento da queda, passaram um a dois minutos. “Tanto que, na hora em que vi que o avião estava a cair, peguei no telemóvel para gravar — mas quando cliquei para filmar, ele já tinha caído”.
O mecânico vive a menos de 1 km do acidente, e diz que se deslocou rapidamente ao local, na tentativa de ajudar no resgate, caso fosse necessário. “No caminho, vi o olhar de desespero das pessoas pela rua“, conta.
Quando se aproximou do local, João sentiu um forte cheiro de fumo e não se aproximou muito do avião por causa do calor das chamas e risco de explosão. Mas conta que, ao ver a aeronave, percebeu que todas as pessoas já estavam mortas.
“Cheguei antes da polícia. Só havia umas dez pessoas. Quando cheguei, vi os corpos no chão. É complicado esquecer. Não vou esquecer nunca mais. Ainda mais por estar na história de Vinhedo”.
A tragédia em Vinhedo tornou-se o mais letal acidente aéreo em solo brasileiro desde 2007, quando um avião da TAM matou 199 pessoas numa colisão com um prédio ao tentar pousar no aeroporto de Congonhas, em São Paulo.