Os astrónomos encontraram o antigo coração da Via Láctea

Um grupo de astrónomos conseguiu identificar o “pobre coração velho da Via Láctea” – uma população de estrelas remanescente da história inicial da nossa Galáxia, que reside nas regiões centrais.

Para este feito de “arqueologia galáctica”, os investigadores analisaram dados do mais recente catálogo da missão Gaia da ESA, utilizando uma rede neuronal para extrair as metalicidades de dois milhões de estrelas gigantes e brilhantes na região interior da nossa Galáxia.

A deteção destas estrelas, mas também das suas propriedades observadas, fornece uma bem-vinda corroboração para simulações cosmológicas da história mais antiga da Via Láctea.

A nossa Galáxia, a Via Láctea, formou-se gradualmente ao longo de quase toda a história do Universo, abrangendo 13 mil milhões de anos.

Nas últimas décadas, os astrónomos conseguiram reconstruir diferentes épocas da história galáctica da mesma forma que os arqueólogos conseguem reconstruir a história de uma cidade: alguns edifícios vêm com datas explícitas de construção.

Para outros, a utilização de materiais de construção mais primitivos ou estilos de construção mais antigos implica que surgiram antes, tal como a situação em que os restos são encontrados por baixo de outras estruturas (e, portanto, mais recentes).

Por último, mas não menos importante, os padrões espaciais são essenciais – para muitas cidades, haverá uma “cidade velha” central rodeada por zonas que são claramente mais recentes.

Para as galáxias, e em particular para a nossa, a arqueologia cósmica segue linhas muito semelhantes. Os blocos básicos de construção de uma galáxia são as suas estrelas.

Para um pequeno subconjunto de estrelas, os astrónomos podem deduzir com precisão a sua idade. Por exemplo, isto é verdade para as chamadas subgigantes, uma breve fase da evolução estelar onde o brilho e temperatura de uma estrela podem ser usados para deduzir a sua idade.

Estimando a idade a partir da química

Mais geralmente, para quase todas as estrelas, existe um “estilo de construção” que permite um veredicto geral acerca da idade: a chamada metalicidade de uma estrela, definida como a quantidade de elementos químicos mais pesados do que o hélio na atmosfera da estrela.

Tais elementos, a que os astrónomos chamam “metais”, são produzidos dentro das estrelas através da fusão nuclear e libertados perto ou no final da sua vida – alguns quando a atmosfera de uma estrela de baixa massa se dispersa; os elementos mais pesados, mais violentamente, quando uma estrela massiva explode como uma supernova.

Desta forma, cada geração de estrelas “semeia” o gás interestelar a partir do qual se forma a próxima geração de estrelas e, geralmente, cada geração terá uma metalicidade mais elevada do que as anteriores.

Quanto às estruturas de maior escala, tal como numa cidade, a distribuição espacial também conta. Mas dado que uma galáxia é menos estática do que uma cidade – os edifícios não se deslocam, ao passo que as estrelas têm movimento – os padrões de movimento codificam também informação importante.

As estrelas da Via Láctea podem estar confinadas às regiões centrais, ou podem fazer parte de um movimento ordenado em torno dessas regiões, posicionadas no disco fino ou no disco espesso da Via Láctea. Ou então podem fazer parte do caos de órbitas no halo da nossa Galáxia – incluindo aquelas estrelas muito excêntricas, que mergulham repetidamente através das regiões interiores e exteriores.

Como as galáxias crescem com o tempo

Ao passo que as cidades podem ser submetidas a períodos de construção ou remodelação intensiva, a história galáctica é moldada por fusões e colisões, bem como pelas vastas quantidades de hidrogénio gasoso que fluem para as galáxias ao longo de milhares de milhões de anos, a matéria-prima para a construção de estrelas por parte da galáxia.

A história de uma galáxia começa com protogaláxias mais pequenas: regiões densas pouco depois do Big Bang, onde as nuvens de gás colapsam para formar estrelas.

Como tal, as protogaláxias colidem e fundem-se, formando galáxias maiores. Acrescente-se uma protogaláxia a estes objetos já um pouco maiores, nomeadamente uma protogaláxia com um grande momento angular orbital, e podemos ficar com um disco de estrelas.

Na fusão de duas galáxias suficientemente grandes, os seus reservatórios de gás vão aquecer, formando uma complicada galáxia elíptica que combina uma escassez de nova formação estelar com um padrão complexo de órbitas para estrelas mais antigas e existentes.

A reconstrução deste tipo de história é uma questão de combinar observações cada vez mais informativas com simulações cada vez mais sofisticadas.

E embora o quadro geral do que acontece à medida que as galáxias se formam e evoluem já exista há algumas décadas, as especificidades só surgiram comparativamente há pouco tempo – em grande parte graças a levantamentos que produziram melhores dados e mais abrangentes.

A nossa Galáxia, a Via Láctea, desempenha um papel especial neste contexto. Por definição, é a galáxia cujas estrelas podemos examinar melhor e da forma mais detalhada.

A arqueologia galáctica, definida como o estudo da história da nossa Via Láctea, não só nos permite reconstruir partes da nossa própria história mais ampla, mas também aprender algo sobre a evolução galáctica em geral.

O que veio antes dos emocionantes anos da adolescência da Via Láctea?

Este episódio particular da arqueologia galáctica começou com uma reconstrução publicada na primavera de 2022: os investigadores Maosheng Xiang e Hans-Walter Rix, do Instituto Max Planck para Astronomia, utilizaram dados do satélite Gaia da ESA e do levantamento espectral LAMOST para determinar as idades de estrelas numa amostra sem precedentes de 250.000 subgigantes.

A partir desta análise, os astrónomos foram capazes de reconstruir as consequências da emocionante adolescência da Via Láctea, há 11 mil milhões de anos, e da sua subsequente idade adulta mais calma (ou “aborrecida”).

O que os astrónomos notaram na altura foi que as estrelas mais velhas na sua amostra da adolescência já tinham uma metalicidade considerável, cerca de 10% da metalicidade do nosso Sol.

Claramente, antes da formação dessas estrelas, devem ter existido ainda gerações anteriores que poluíram o meio interestelar com metais.

O que nos dizem as simulações acerca do núcleo antigo da Via Láctea

De facto, a existência dessas gerações anteriores estava em linha com as previsões das simulações da história cósmica. E, além disso, essas simulações previam onde as representantes, sobreviventes dessas gerações anteriores, poderiam razoavelmente ser encontradas!

Especificamente, nestas simulações, a formação inicial do que mais tarde se tornou na nossa Via Láctea, envolveu três ou quatro protogaláxias que se tinham formado em estreita proximidade e que depois se fundiram umas com as outras, as suas estrelas assentando como um núcleo comparativamente compacto, com não mais do que alguns milhares de anos-luz de diâmetro.

Adições posteriores de galáxias mais pequenas levariam à criação das várias estruturas de disco e do halo.

Mas, de acordo com as simulações, parte desse núcleo inicial poderia ter sobrevivido, relativamente incólume, a estes desenvolvimentos posteriores.

Deveria ser possível encontrar estrelas do núcleo compacto inicial, o antigo coração da Via Láctea, ainda hoje perto e nas regiões centrais da nossa Galáxia, milhares de milhões de anos mais tarde.

Em busca de estrelas do antigo núcleo

Nesta altura, Rix interessou-se por formas de efetivamente encontrar estrelas do núcleo antigo da nossa Galáxia. Mas ele sabia que para encontrar mais do que apenas algumas dúzias dessas estrelas, precisaria de uma nova estratégia de observação.

O telescópio LAMOST, utilizado no estudo anterior, devido à sua localização na Terra e à sua incapacidade de observar durante os meses das monções no verão, não pode de todo observar as regiões do núcleo da Via Láctea.

E as subgigantes, como escolha anterior, são demasiado fracas para serem observáveis para além de distâncias de cerca de 7000 anos-luz, colocando as regiões centrais da nossa Galáxia fora de alcance.

Lembremo-nos que, em adição àquelas raras estrelas onde podemos determinar idades específicas, existe o indicador muito mais geral da metalicidade estelar – os “estilos variáveis de construção” que permitem classificar as estrelas como mais velhas ou mais jovens.

Felizmente, em junho de 2022 foi divulgado o DR3 (Data Release 3) da missão Gaia da ESA.

Desde 2014, o Gaia tem vindo a medir parâmetros altamente precisos de posição e movimento para mais de mil milhões de estrelas, revolucionando (entre outros subcampos) a astronomia galáctica.

O DR3 foi o primeiro catálogo de dados a incluir alguns dos espectros reais que o Gaia tinha observado: espectros para 220 milhões de objetos astronómicos.

Gigantes vermelhas do Gaia

Os espectros são onde os astrónomos encontram informações sobre a composição química da atmosfera de uma estrela, incluindo a metalicidade.

Mas ao passo que os espectros do Gaia são de alta qualidade, e em números sem igual, a resolução espectral – quão finamente a luz de um objeto é dividida por comprimento de onda nas cores elementares do arco-íris – é comparativamente baixa por defeito.

A extração de valores fiáveis da metalicidade a partir dos dados do Gaia exigiria uma análise extra, e foi isto que Hans-Walter Rix e René Andrae, investigadores do Gaia no Instituto Max Planck para Astronomia, abordaram num projeto com o estudante visitante de verão Vedant Chandra da Universidade de Harvard.

Como sabiam que a sua análise era necessária para alcançar as regiões centrais da Via Láctea, os três astrónomos olharam especificamente para as estrelas gigantes vermelhas na amostra do Gaia.

As gigantes vermelhas típicas são cerca de cem vezes mais brilhantes do que as subgigantes e facilmente observáveis até nas distantes regiões do núcleo da nossa Galáxia.

Estas estrelas têm também a vantagem adicional de as características espectrais que codificam a sua metalicidade serem comparativamente evidentes, tornando-as particularmente adequadas para o tipo de análise que os astrónomos estavam a planear.

Extraindo metalicidades com aprendizagem de máquina

Para a análise propriamente dita, os astrónomos recorreram a métodos de aprendizagem de máquina.

Atualmente, muitos de nós já se terão deparado com aplicações desta técnica inovadora: o software como o DALL-E que gera imagens adequadas a partir de simples descrições textuais, ou o ChatGPT que consegue responder mais ou menos competentemente a perguntas e satisfazer pedidos de escrita.

A propriedade chave da aprendizagem de máquina é que as estratégias de solução não são programadas explicitamente. Ao invés, no núcleo do algoritmo está uma chamada rede neuronal, com semelhanças superficiais com a forma como os neurónios estão dispostos no cérebro humano.

Essa rede neuronal é então treinada: são-lhe fornecidas combinações de tarefas e as soluções, e as ligações entre “input” e “output” ajustadas de modo a que, pelo menos para o conjunto de treino, a rede produza “outputs” corretos dado um “input” específico.

Neste caso em concreto, a rede neuronal foi treinada utilizando espectros selecionados do Gaia como “input” – especificamente: espectros do Gaia para os quais a resposta certa, a metalicidade, já era conhecida de outro levantamento (APOGEE, observações espectrais de alta resolução como parte do SDSS [Sloan Digital Sky Survey]).

A estrutura interna da rede adaptou-se para que, pelo menos para o conjunto de treino, pudesse reproduzir as metalicidades corretas.

Metalicidades fiáveis para 2 milhões de gigantes brilhantes

Um desafio geral na utilização de aprendizagem de máquina na ciência é que, pela sua própria natureza, a rede neuronal é uma “caixa negra” – a sua estrutura interna foi formada pelo processo de treino e não está sob o controlo direto dos cientistas.

É por isso que, para começar, Andrae, Chandra e Rix treinaram a sua rede neuronal apenas com metade dos dados do APOGEE.

Num segundo passo, o algoritmo foi então configurado para provar o seu valor em relação ao resto dos dados desse levantamento – com resultados espetaculares: a rede neuronal foi capaz de deduzir metalicidades precisas mesmo para estrelas que nunca tinha encontrado antes.

Agora que os investigadores não só tinham treinado a sua rede neuronal, mas também assegurado que poderiam obter resultados precisos para espectros que não tinha encontrado durante o seu treino, os investigadores aplicaram o algoritmo à totalidade do seu conjunto de dados de espectros de gigantes vermelhas obtido pelo Gaia.

Uma vez obtidos os resultados, os investigadores tiveram acesso a uma amostra de metalicidades precisas com um tamanho sem precedentes, consistindo em 2 milhões de gigantes brilhantes na região interna da Via Láctea.

H.-W. Rix / Instituto Max Planck para Astronomia

Mapas de estrelas gigantes, especialmente pobres em metais, identificadas a partir de dados do DR3 do Gaia que mostram, como uma região concentrada (marcada com um círculo), as estrelas do “pobre coração velho” da Via Láctea. O mapa mostra todo o céu noturno da mesma forma que certos mapas do mundo mostram a superfície da Terra. No centro do mapa está o Centro Galáctico.

Mapeando o antigo coração da Via Láctea

Com essa amostra, provou-se comparativamente fácil a identificação do antigo coração da Via Láctea – uma população de estrelas que Rix apelidou de “pobre coração velho”, dada a sua baixa metalicidade, idade avançada inferida e localização central.

Num mapa do céu, estas estrelas parecem estar concentradas em torno do Centro Galáctico.

As distâncias convenientemente fornecidas pelo Gaia (através do método de paralaxe) permitem uma reconstrução 3D que mostra essas estrelas confinadas a uma região comparativamente pequena em torno do centro, com aproximadamente 30.000 anos-luz de diâmetro.

As estrelas em questão complementam perfeitamente o estudo anterior de Xiang e Rix sobre a adolescência da Via Láctea: possuem a metalicidade certa para terem trazido à ribalta as estrelas mais pobres em metais que, mais tarde, formaram o disco espesso da Via Láctea.

Tendo em conta que esse estudo anterior forneceu uma cronologia para a formação dos discos espessos, isto faz com que o antigo coração da Via Láctea tenha 12,5 mil milhões de anos ou mais.

Um percurso para encontrar as galáxias progenitoras da Via Láctea?

Embora a informação obtida a partir da visão global do Gaia seja pioneira na demonstração da existência contínua do “pobre coração velho” da Via Láctea, esta descoberta faz com que os astrónomos queiram imediatamente mais.

Será que podemos obter mais espectros detalhados para todas essas estrelas, que permitem uma análise detalhada da sua composição química? Será que todas elas mostram melhoramento alfa, consistente com a sua formação no núcleo inicial da Via Láctea?

Os espectros de acompanhamento obtidos no âmbito do recém-lançado levantamento SDSS-V ou do futuro 4MOST, prometem permitir ao grupo obter a informação necessária para responder a estas questões-chave.

Se as coisas correrem excecionalmente bem, os dados adicionais podem até permitir aos investigadores identificar quais as estrelas na região central que pertencem às galáxias progenitoras da Via Láctea: para uma estrela mais velha, os dados adicionais sobre a composição química e temperatura permitem uma estimativa fiável da luminosidade da estrela.

Em comparação com a luminosidade dessa estrela no céu, pode-se deduzir a distância à estrela – quanto mais distante estiver uma estrela, mais fraca parecer-nos-á.

Para as estrelas comparativamente muito distantes em questão, os valores de distância obtidos desta forma são consideravelmente mais precisos do que os resultados das medições de paralaxe pelo Gaia.

A combinação da posição de uma estrela no céu e a sua distância dá-nos a localização tridimensional da estrela dentro da Via Láctea.

A informação sobre o movimento das estrelas na nossa direção ou na direção oposta – medido pelo efeito Doppler das suas linhas espectrais -, combinada com os seus movimentos aparentes no céu, permite a reconstrução das órbitas das estrelas dentro da nossa Galáxia.

Se tal análise mostrar que as estrelas do pobre coração velho pertencem a dois ou três grupos diferentes, cada um com o seu próprio padrão de movimento, é provável que esses grupos correspondam às diferentes duas ou três galáxias progenitoras cuja fusão inicial criou a arcaica Via Láctea.

// CCVAlg

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