A origem da obsessão dos portugueses com o bacalhau

Numa noite fria de inverno em Portugal, pode ser servido com natas — recém-saído do forno, borbulhando em creme de leite — entre camadas de batatas fritas e fatias de cebola, temperado com noz-moscada.

Não é preciso andar muito pelas calçadas das ruas íngremes de Lisboa para encontrá-lo na forma de pataniscas crocantes, servidas com um pouco de sal grosso e acompanhadas de molho tártaro ou outro molho picante.

Podemos comprá-lo ainda na forma de bolinhos, temperados com alho e salsa, para saborear enquanto passeia pelas margens do Rio Douro, na cidade do Porto. Ou até encontrá-lo na forma de açorda, uma sopa com pão típica do Alentejo, coberta por coentros e um ovo escalfado.

O bacalhau, ingrediente central de todos esses pratos, está profundamente arraigado na identidade culinária portuguesa. O país consome 20% da produção mundial.

Na verdade, esse peixe é tão importante para os corações (e estômagos) dos portugueses, que um ditado local afirma que “existem 365 formas de preparar bacalhau, uma para cada dia do ano”.

Mas o bacalhau só é encontrado nas profundezas geladas do Oceano Atlântico Norte, longe das costas portuguesas. É isso que torna o caso de amor entre Portugal e o bacalhau ainda mais curioso. Como acabou este peixe nos pratos portugueses?

Para encontrar a resposta, é preciso revisitar mais de 500 anos de história.

Viagem à história

Tudo começou no final do século 14, quando a Marinha portuguesa percebeu que o bacalhau seco e salgado poderia ser armazenado durante anos nos porões dos navios. Era o alimento perfeito para as longas viagens marítimas.

Em meados dos anos 1400, durante as explorações marítimas portuguesas e a busca para chegar ao litoral da Índia, encontraram águas ricas em bacalhau perto do Canadá e da Gronelândia. Essa descoberta importante deu início à pesca do bacalhau pelos portugueses. Mas, no século XVI, os pescadores portugueses foram expulsos da região pelos franceses e ingleses.

Nos séculos que se seguiram, Portugal ficou muito dependente da Inglaterra, que era o principal exportador de bacalhau. Nos anos 1800, o ingrediente era uma iguaria reservada à aristocracia.

Mas a popularidade do bacalhau aumentou no século XX, durante o regime de Salazar, que queria trazer o peixe de volta para casa.

A sua “campanha do bacalhau“, lançada em 1934, buscava reacender a indústria portuguesa da pesca (e da secagem do peixe) e instituir o bacalhau como símbolo nacional. Milhares de pescadores portugueses foram enviados para o Canadá e a Gronelândia para pescar bacalhau, e alguns chegavam a levar para casa até 900 toneladas por navio.

Mas era um trabalho extenuante, demorado e, muitas vezes, perigoso. Muitos dos homens nunca retornavam às suas famílias.

Esse trabalho prosseguiu até mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, quando um navio português chamado Maria da Glória foi bombardeado enquanto se dirigia para os bancos de pesca na costa ocidental da Groenlândia, matando 36 pessoas a bordo.

Estas condições prejudicam a indústria pesqueira até hoje. Estima-se que 24 mil pessoas percam a vida no setor anualmente em todo o mundo, segundo a organização Seafarers Rights International.

“Não sobreviveríamos sem Portugal”

Atualmente, Portugal importa da Noruega cerca de 70% do seu bacalhau. O Conselho Norueguês da Pesca descreve Portugal como “de longe, o maior mercado do bacalhau da Noruega”. E, das 100 mil toneladas que a Noruega exporta anualmente para Portugal, 95% são de bacalhau salgado, segundo a entidade.

Na remota e gelada ilha pesqueira norueguesa de Røst, o bacalhau mais pesado de uma expedição de pesca recebe até um nome específico: “bacalhau português“.

Quem confirma é Rita Karlsen, executiva-chefe da empresa norueguesa Bødrene Karlsen, que exporta bacalhau seco e salgado para Portugal desde a sua fundação, em 1932.

Portugal é muito importante [para os exportadores de bacalhau da Noruega]; é o nosso cliente mais importante”, afirma. “Não teríamos conseguido sobreviver sem Portugal.”

Esta influência espalhou-se até países como o Brasil, que importou 8,6 toneladas de bacalhau somente para a Semana Santa em 2019, e Angola, que importou 308 toneladas de bacalhau da Noruega em 2012, segundo o Centro Interpretativo da História do Bacalhau, em Lisboa.

Na Itália, existe até um festival do bacalhau, a “Festa del Bacala“, que é realizada todos os anos em Veneza. E, na região da Toscana, as pessoas apreciam pratos clássicos como o bacalhau à moda de Livorno, que combina bacalhau com um rico molho de tomate com alho.

Para outros chefs de cozinha portugueses, o bacalhau reúne o passado e o presente. Entre eles, está Marlene Vieira, jurada do programa MasterChef Portugal, chef de dois restaurantes de Lisboa e o único rosto feminino entre os chefs do Time Out Market de Lisboa, onde as suas pataniscas de bacalhau rendem elogios.

Ela explica que a receita vem da sua avó. O ambiente de pobreza em que ela vivia fez com que usasse na massa partes menos nobres do bacalhau, como o rabo, que são mais baratas. Como tem menos humidade, resultou num acabamento mais crocante, “parecido com tempurá” — uma excelente combinação com o pimentão vermelho assado e a maionese de alho servidos por Vieira para acompanhar.

Marlene lembra-se de ajudar a sua avó na cozinha quando era criança “para fazer as coisas que ela não gostava de fazer”, como descascar a cebola, o alho e, claro, retirar cuidadosamente as espinhas do bacalhau.

Hoje, ao mesmo tempo em que mantém as tradições, Vieira faz questão de promover o peixe, junto aos frutos do mar locais portugueses. O seu refinado restaurante Marlene dedica-se exatamente a isso.

Ela até cozinha bacalhau em casa para sua filha que “ama, ama, ama bacalhau”. Talvez seja uma prova de que, apesar da distância que o país precisa percorrer para trazer o peixe do Atlântico Norte, a paixão pelo bacalhau continuará a fluir no sangue português pelas próximas gerações.

ZAP // BBC

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