A origem da obsessão dos japoneses com regras e manuais de instruções

No Japão há manual para quase tudo. Das instruções mais simples, como o uso da escada rolante, até como atender clientes e operar equipamentos complexos tudo está descrito em letras.

A raiz desse apego japonês a manuais pode estar na “escrituralidade” do povo, explica Daisuke Onuki, professor do Departamento de Estudos Internacionais da Universidade Tokai.

Os japoneses começaram a ser alfabetizados no período Edo (1603 a 1868), quando foram fundadas escolas de caligrafia e escrita para camponeses e artesãos em geral. Era uma educação dotada de juízos e valores morais. Eles praticavam as suas habilidades linguísticas fazendo cópias de leis, informativos e escrituras sagradas do budismo.

Manuais, manuais e mais manuais

Desde pequenos, os japoneses são treinados a seguir regras. Quando estão a ser alfabetizados, uma das primeiras coisas que aprendem é a ordem e a contagem dos traços dos ideogramas (kanji).

A padronização na escrita permite a qualquer pessoa reconhecer os caracteres mesmo quando escritos na forma cursiva ou corrida. O importante é entender bem a regra básica, e isso vale para quase tudo no Japão. Ou se aprende na escola, ou com a ajuda de diversos manuais vendidos em livrarias. Quando se trata de ambiente de trabalho, a bibliografia é extensa.

Além dos livros fundamentais de etiqueta empresarial com ensinamentos de como atender o telefone ou onde se sentar numa sala de reunião conforme a posição hierárquica, por exemplo, há os manuais internos de cada empresa com outras inúmeras instruções e procedimentos operacionais.

Quanto mais detalhes tiver, mais indispensável será o manual para reduzir riscos de interpretações erróneas, segundo o empresário Ryo Nakayama, autor de Chefe, quer-nos transformar em robôs? (em tradução livre, lançado em 2020).

As palavras que formam o título do livro foram-lhe ditas por um funcionário de uma empresa. “Quando algumas pessoas ouvem a palavra ‘manual’, podem ter a impressão de que estão a ser instruídas a seguir uma fórmula. Mas isso é um grande mal-entendido”, afirma Nakayama à BBC News Brasil.

“Um manual nada mais é do que uma ferramenta para o desenvolvimento dos recursos humanos e o crescimento da empresa, e não para construir robôs. Se deseja criar pessoas que possam quebrar o molde, é preciso criar o molde.”

Há 10 anos, Nakayama fundou a empresa 2.1 (Nitenichi), especializada na criação de manuais para revitalizar empresas. Ele diz que a falta desse tipo de material prejudica a produtividade, além de gerar stress por mal-entendidos na transmissão de mensagens.

Na prática, o trabalho nem sempre ocorre 100% de acordo com o esperado. “Contudo, se os procedimentos básicos estiverem resumidos num manual, o conhecimento empresarial pode ser partilhado entre várias pessoas e como resultado, pode prosseguir com o seu trabalho de maneira tranquila e eficiente”, afirma.

A origem da cultura dos manuais

Desde os tempos antigos, já havia algo semelhante a manuais, como códigos de conduta, regras e explicações, mas as bases do que conhecemos hoje como manual teriam surgido do “método científico de gestão” criado por Frederick Winslow Taylor, no final do século XIX, nos Estados Unidos.

Ao abrir a sua primeira loja no Japão, em 1971, a rede de fast food McDonald ‘s teria introduzido o conceito de manual como existe atualmente no país, detalhando procedimentos e também como deveria ser o atendimento ao cliente.

Esse formato de material foi-se multiplicando e adicionando características locais. Há muitos outros elementos sociais e culturais japoneses que se encontram nas entrelinhas dos manuais, de difícil compreensão para os estrangeiros.

A maneira correta de se dirigir a alguém, as expressões básicas de cortesia, tudo isso se aprende num curso de idioma japonês, além do tom de voz e o jeito de falar que também são considerados essenciais num ambiente de trabalho, porque refletem respeito e educação. Esse tipo de informação é o óbvio que nem sempre é incluído nos manuais.

“Se entender tudo isso é difícil para um japonês, imagine então para um estrangeiro”, diz Kazue Matsushita, especialista em recursos humanos que treinou vários profissionais para ingressar em empresas do Japão.

A aprendizagem dá-se de forma cumulativa. Desde cedo, a criança japonesa aprende a usar uniforme, onde se posicionar numa fila, como dizer determinadas coisas e agir em diversas situações.

Esse treino contínuo é importante num país vulnerável a desastres naturais como terramotos, tsunamis e tufões, e ajudou muito durante a pandemia do coronavírus.

Kazue lembra que não houve resistência da população japonesa às medidas tomadas pelo governo, porque faz parte da cultura local pensar no coletivo e agir conforme a maioria.

“Nem tudo tem lógica”

Quem é de fora do país aprende observando e copiando ou procurando respostas nos manuais.

“Mas nem tudo tem lógica”, afirma a brasileira Eliza Yuka Sato, de 56 anos, que vive na Província de Aichi.

Quando trabalhava numa fábrica, ela costumava andar como um caranguejo ao redor de uma mesa com caixas com várias peças, fazendo como os colegas.

Não entendia o porquê daquilo, já que mesmo estando parada conseguiria fazer aquele trabalho. Só depois descobriu que os japoneses andavam para combater o sono.

Por muitos anos, Eliza também trabalhou como consultora num órgão público para ajudar residentes estrangeiros, e a regra era “tudo o que acontecesse tinha que passar pela chefia”. Porém, até chegar ao topo da hierarquia, havia um longo caminho a percorrer.

“O manual ajuda a organizar o trabalho, mas também pode virar uma camisa de forças”, diz Eliza. “Para problemas pessoais, é preciso ter flexibilidade, mas a hierarquia e a burocracia acabam por atrapalhar. E alguns casos eram urgentes.”

De todas as regras do quotidiano japonês, as mais rigorosas que devem ser seguidas à risca estão relacionadas com o lixo e ao barulho.

Esses temas são os que mais geram conflitos entre japoneses e estrangeiros. Muitas cidades têm manuais bem ilustrados e detalhados sobre quando e como descartar cada tipo de lixo. Por exemplo, a tampa e a etiqueta das garrafas PET devem ser removidas antes de descartadas, porque os dias de recolha para cada item costumam ser diferentes. Misturar ou depositar determinado tipo de lixo na data errada é o motivo de briga entre vizinhos.

No entanto, cada cidade tem o seu próprio manual. Nilton Funabashi, que vive na cidade de Iidaembra, chegou a ser insultado por um japonês porque tinha usado um tipo de saco plástico diferente do permitido na região para a qual tinha acabado de se mudar.

“E como saber, se ninguém fala? Foi por isso que depois me dispus a preparar um manualzinho em português para ajudar outros brasileiros da minha cidade.”

Barulho é outro tema de desavenças, por isso as regras relacionadas a isso costumam fazer parte dos “guias de convivência” produzidos em vários idiomas e distribuídos pelas câmaras de cidades com concentração de estrangeiros.

“Conforme o tipo de construção, as paredes são tão finas que deixam passar até o barulho dos passos, invadindo o espaço alheio”, conta Kazue Matsushita.

“A cultura japonesa é peculiar, então só entendendo para não ter problemas. Ou fazendo tudo conforme os manuais.”

ZAP // BBC

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