Já vão mais de 20 anos que o estudo de imagens obtidas por ressonância magnética funcional (IRMf), tem vindo a detectar, à escala de todo o cérebro, padrões complexos de actividade cerebral correlacionada que surgem alterados num amplo leque de distúrbios neurológicos e psiquiátricos.
Estes padrões formam-se de maneira espontânea, mesmo em repouso – ou seja quando nenhuma tarefa está a ser desempenhada pelo sujeito – e têm sido detectados não só no ser humano, mas também nos mamíferos em geral, incluindo macacos e roedores.
Mas embora estes padrões espaciais de activação correlacionada tenham sido consistentemente detectados nos centros de neuroimagem de todo o mundo, a natureza dessas correlações não era ainda clara.
“Ainda não percebemos totalmente como as diversas partes do cérebro comunicam entre si a grande distância”, diz Noam Shemesh, investigador principal do Laboratório de IRM Pré-clínica na Fundação Champalimaud, em Lisboa, e co-autor de um estudo publicado esta semana na Nature Communications.
“Sabemos que áreas distantes mostram correlações entre os respectivos sinais, que essas correlações estão implicadas na função cerebral, mas ainda não percebemos bem a sua natureza”, acrescenta o investigador.
“Neste estudo, quisemos perceber o que está por trás dessas correlações e investigar os mecanismos envolvidos”, enfatiza Shemesh, citado pela EurekAlert.
Vários trabalhos teóricos já tinham proposto que esses padrões poderiam ser explicados pela existência de ondas de ressonância estacionárias (caracterizadas por pontos de máximo e mínimo fixos no espaço) na estrutura do cérebro, análogas aos modos de vibração dos instrumentos musicais.
Mas as evidências experimentais que permitissem corroborar esta hipótese eram escassas devido à baixa resolução temporal, de apenas uma a duas imagens por segundo, da IRMf — tecnologia muito usada para obter vídeos ao vivo da actividade cerebral.
“Se conseguíssemos mostrar que os padrões espaciais oscilam, isso fornecer-nos-ia indícios para confirmar a hipótese da ressonância”, diz Joana Cabral, investigadora do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde da Universidade do Minho, investigadora visitante no laboratório de Shemesh desde 2019, e primeira autora do estudo.
O que os investigadores fizeram então foi acelerar a aquisição de imagens. E descobriram que os sinais em regiões do cérebro distantes uma da outra oscilam efectivamente ao longo do tempo.
“Estes padrões oscilatórios assemelham-se aos modos de ressonância dos instrumentos musicais embora de maior dimensionalidade; são como reverberações, como ecos [não-sonoros] dentro do cérebro”, diz Cabral.
“Os nossos resultados mostram que os padrões espaciais complexos são o resultado de modos transitórios subjacentes que oscilam independentemente uns dos outros, tal como os instrumentos musicais individuais concorrem para criar uma peça mais complexa numa orquestra”, diz Shemesh.
“Os distintos modos, cada um contribuindo para a imagem global a escalas temporais diferentes e a diferentes comprimentos de onda, podem ser adicionados entre si, gerando padrões macroscópicos complexos semelhantes aos que observamos experimentalmente.
Tanto quanto sabemos, esta é a primeira vez que a actividade cerebral captada pela IRMf é reconstruída por sobreposição de ondas estacionárias”, salienta.
O novo estudo marcadamente sugere então que essas ondas – ou modos – de ressonância desempenham um papel determinante na função cerebral.
Os autores acreditam que estes fenómenos de ressonância estão na raiz da actividade cerebral coerente e coordenada necessária para o normal funcionamento do cérebro como um todo.
IRM ultrarápida
Os investigadores detectaram os modos de ressonância em ratos no estado de repouso (resting state), o que significa que os animais não foram submetidos a qualquer tipo de estímulo exterior.
De facto, não precisaram de desempenhar tarefas porque, como já referido, mesmo quando não estamos (nós e os mamíferos em geral) a fazer nada em particular, o nosso cérebro gera padrões de actividade espontânea que podem ser captados por IRMf.
Para visualizar as oscilações, criaram “vídeos” da actividade utilizando a potente máquina experimental de IRM de campo magnético ultra-alto, instalada no laboratório de Shemesh, para realizar experiências ultrarápidas desenvolvidas anteriormente por esse laboratório para outros fins.
A equipa decidiu tentar obter registos de actividade cerebral à maxima resolução temporal alcançável no scanner de 9,4 Tesla, do seu laboratório, e conseguiu atingir uma resolução temporal de 26 imagens por segundo, “permitindo-nos obter 16.000 imagens por cada scan de 10 minutos (em vez de 600 imagens com a resolução típica de uma imagem por segundo)”, recorda Joana Cabral.
Como ondas no oceano
“Quando olhámos para os vídeos da actividade cerebral, vimos claramente as ondas de actividade, como ondas no oceano, a propagarem-se em complexos padrões no córtex e no estriado, uma região subcortical na parte frontal do cérebro”, diz Joana Cabral.
“E descobrimos que esses sinais podiam ser descritos pela superposição de um pequeno número de ondas macroscópicas estacionárias, ou modos de ressonância, que oscilavam no tempo”, acrescenta.
“É de notar que cada onda estacionária abrangia extensas áreas do cérebro, com picos distribuídos em distintas estruturas corticais e subcorticais, formando redes funcionais”, realça a investigadora.
Os investigadores realizaram as experiências em ratos em três estados diferentes: sedados, ligeiramente anestesiados e profundamente anestesiados. Os ratos em estado de repouso foram sedados para lhes evitar qualquer desconforto.
“A configuração espacial das ondas estacionárias revelou-se muito concordante em todos os ratos que se encontravam na mesma condição”, salienta Cabral.
A isto Shemesh acrescenta: “Mostrámos que as redes funcionais cerebrais são moldadas por fenómenos de ressonância. Isso explica as correlações observadas com captura lenta de imagens. As interações cerebrais de longo alcance são governadas por um ‘fluxo’ de informação oscilatório e repetitivo.”
Estados patológicos
A equipa também descobriu que o facto de aumentar a quantidade de anestésico reduz o número, a frequência e a duração das ondas estacionárias de ressonância.
Como já foi referido, estudos anteriores mostraram que certos padrões de activação cerebral se encontram alterados nos distúrbios da consciência. Portanto, as experiências, diz Cabral, também visavam imitar certos estados patológicos.
“As redes funcionais surgem alteradas em várias doenças neurológicas e psiquiátricas”, refere a investigadora. Se os resultados do estudo se confirmarem no ser humano, especula, os modos de ressonância poderiam vir a servir de biomarcadores de doença.
“O nosso estudo também abre um novo caminho na forma como olhamos para as doenças cerebrais”, corrobora Shemesh. “Sabemos que a actividade cerebral fica fortemente afectada na doença, mas não percebemos porquê ou como”.
“Perceber o mecanismo das interacções de longo alcance poderia conduzir a uma forma totalmente nova de caracterizar as doenças e de dar pistas para o tipo de tratamento que poderá ser necessário: por exemplo, se um modo de ressonância específico está ausente num doente, poderíamos pensar em encontrar maneiras de estimular esse modo em particular”, conclui o investigador.
ZAP // EurekAlert