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“Severance” separa a memória do emprego da vida pessoal. Não é (só) ficção

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Adam Scott é Mark Scout na série “Severance” da Apple TV, que acaba de voltar para a sua 2.ª temporada.

E se pudesse trabalhar inconsciente e chegar a casa sem se lembrar de ter estado no emprego? É possível ter um cérebro “separado”? A neurociência por trás da alucinante série da Apple TV+.

Quase três anos depois, “Severance” está de volta ao pequeno ecrã com muitos mistérios e pontas soltas por resolver.

Quem viu a primeira temporada, já sabe que a sufocante série da Apple TV+ nos mostra um mundo onde o trabalho e a vida pessoal são 100% separados cirurgicamente.

Na série produzida por Ben Stiller, os trabalhadores da empresa Lumon Industries que se submetem ao procedimento chamado “severance” (em português, “separação”) criam, tecnicamente, uma “nova versão” sua: o “innie“. Mas o que é que isto significa?

A separação entre vida pessoal e de trabalho imaginada pela série é total, o que implica que os empregados submetidos ao procedimento não se recordem, cá fora, de absolutamente nada do que fizeram durante as oito horas que estiveram no trabalho.

Mas o outro lado da moeda é talvez mais arrepiante. A “versão” da pessoa que está lá dentro, a trabalhar, não sabe quem é lá fora, onde vive como “outie“: a entidade criada para trabalhar está presa para sempre na empresa.

Embora a premissa seja de ficção científica, os fãs não conseguem deixar de se questionar: será mesmo possível dividir a mente de uma pessoa em duas entidades distintas?

Cérebro “separado” não é ficção

Este conceito não é (inteiramente) fictício, explicam-nos as neurocientsitas Rachael Elward e Lauren Ford, investigadoras na London South Bank University, num artigo no The Conversation.

Desde a década de 1940 que se fazem cirurgias para separar os hemisférios do cérebro em pacientes com epilepsia, de forma a controlar convulsões graves. Um estudo de 2017 da Universidade de Oxford mostrou que cada hemisfério pode processar informação de forma independente, e por isso, sim, será possível que duas “mentes” distintas coexistam num só cérebro.

Em Severance, a versão “innie” (persona que existe só no trabalho) e a “outie” (persona pessoal) das personagens refletem esta dualidade. A comunicação com esses doentes envolve normalmente o hemisfério esquerdo, que governa a fala, mas o hemisfério direito pode exprimir-se de formas não verbais, como a escrever.

Num caso detalhado em 1977 na Annals of Neurology, o hemisfério esquerdo de um doente expressou o desejo de ter um emprego técnico, de escritório, enquanto o hemisfério direito preferia uma carreira mais desafiante do ponto de vista físico, como ser piloto de carros de corrida. Portanto, o mesmo cérebro pode ter objetivos diferentes e até contraditórios.

Memórias para lá da consciência…

Outro fenómeno observado em doentes com cérebro dividido é a “síndrome da mão alienígena“, em que uma mão parece agir independentemente do controlo consciente. Isso não acontece em Severance, o que pode dar algumas pistas sobre o misterioso procedimento a que Mark, Helly, Irving, Dylan e sabe-se lá quantos outros se submeteram voluntariamente. O procedimento “severance” parece ser uma separação mais sofisticada do que aquela que já conhecemos.

Os “innies” da série mantêm a fala, os maneirismos e alguns sentidos (sem nunca o perceberem, claro) dos “outies”, o que indica que estão envolvidas redes neuronais mais complexas no procedimento “severance”. Será que as memórias podem existir fora da consciência? Há provas de que a resposta é sim.

Lembremos o caso de Neil, de 1994. O adolescente, que sofreu uma forma rara de amnésia na sequência de um tumor cerebral, tornou-se incapaz de recordar acontecimentos diários ou de reconhecer objetos. No entanto, conseguia escrever sobre eles, sem ter consciência ou perceber a sua memória.

Quando lhe perguntaram sobre um romance que estava a estudar, por exemplo, Neil escreveu pormenores vívidos do livro, mas dizia que não se lembrava de nada sobre este. “O que é que eu escrevi?”, terá perguntado Neil, confuso, ao investigador.

Severance tem um “Neil”. A personagem Irving (John Turturro) consegue fazer esta ponte entre as suas duas versões, não através da escrita, mas através da pintura. Sem perceber o seu significado, a versão “outie” de Irving pinta os corredores que o seu “innie” percorre diariamente.

… e além do hipocampo

No programa, a transição diária de “innie” para “outie” ocorre na fronteira do escritório, quando as portas do elevador fecham. Curiosamente, a passagem por uma porta também pode perturbar a memória na vida real. É o chamado “efeito de porta”, fenómeno há muito relatado na psicologia.

Tudo isto acontece no hipocampo, região cerebral crítica para a memória e a representação espacial. É nesta zona do cérebro que fica registada, por exemplo, a memória da chegada de um novo colega de trabalho, mas também a memória do aspeto do nosso local de trabalho. Apesar disso, o alvo do procedimento de separação representado na série também não será o hipocampo.

Na série, os trabalhadores sabem factos sobre o seu empregador e sobre o seu fundador e criam memórias emocionais ligadas a recompensas e castigos no local de trabalho. Estas são funções que envolvem redes mais amplas no cérebro, para além do hipocampo, ligadas com a perceção, a atenção e a linguagem.

Uma dissociação diferente das que conhecemos

Severance explora a ideia de dissociação e a forma como suprimimos partes de nós próprios dentro de nós. A série narra a história de Mark, a personagem principal, que está disposta a tudo para se “desligar” do passado assombrado pela morte da mulher.

Há quem sofra com perturbação dissociativa da identidade, que tem alguma semelhança com a premissa do programa. A condição envolve estados de identidade distintos que controlam alternadamente o comportamento, muitas vezes acompanhados de falhas de memória. Mas não envolve uma separação cirúrgica como na série.

Uma investigação da Universidade Carnegie Mellon citada pelo New Scientist demonstrou que os indivíduos que perderam um hemisfério cerebral na infância devido a condições médicas ainda conseguem realizar tarefas complexas, graças à plasticidade do cérebro durante o desenvolvimento. Mas mais uma vez, isto não se aplica à série, uma vez que a maioria das personagens “severed” é adulta.

As duas falhas de “Severance”

O procedimento de separação tal como descrito em “Severance”, enfrenta dois desafios científicos fundamentais, alerta ainda o artigo do The Conversation.

O primeiro é que simplifica demasiado a memória, ao implicar que esta pode ser dividida em domínios separados. A memória está profundamente integrada noutros processos cognitivos, o que torna a divisão ficcional não impossível, mas improvável.

O segundo erro apontado é que as memórias episódicas e semânticas, bem como as memórias emocionais e processuais, dependem de redes cerebrais e não de regiões isoladas. A complexidade dos sistemas de memória humana torna improvável a divisão da consciência de uma pessoa em duas entidades totalmente independentes.

Apesar de tudo, esta é uma preocupação que os criadores de “Severance” não têm como prioridade. A série parece estar mais focada na exploração das implicações psicológicas e éticas do procedimento do que com a sua viabilidade científica.

Possível ou não, a muito aguardada segunda temporada arrancou esta sexta-feira com o primeiro episódio. Semanalmente, será lançado um novo episódio, todas as sextas, às 08h00 da manhã.

Tomás Guimarães, ZAP //

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