Análise do psicólogo Eduardo Sá às pessoas que andam mais tensas, mais hostis e por vezes mais mal-educadas.
Estávamos ainda nos primeiros tempos da pandemia quando um (então) funcionário ligado ao alojamento partilhou connosco o que estava a mudar nos clientes.
Não se aplicava a todos mas havia mais clientes tensos, hostis, mal-educados e até “porcos”, dizia ele.
Ou seja, pessoas que deixavam tudo limpo, o quarto ficava tal como estava antes de chegarem. Mas o cenário frequente passou a ser o contrário: ficava tudo sujo, desarrumado.
“Era altura de pararmos e perguntar o que está a acontecer”, diz Eduardo Sá, anos depois.
O psicólogo sublinha: “Não acho que a pandemia nos tenha deixado mais doentes”.
O que mudou foi outra coisa: “Hoje as pessoas têm coragem de assumir que se deprimiram imenso nessa altura. E calma: deprimirem-se num contexto tão violento, tão absurdo, e com limitações tão graves ou mesmo mortes ao nosso lado… essa reacção é saudável, perante aquela catástrofe”.
Na rádio Observador, o famoso psicólogo explicou que as pessoas que estão adoentadas “não são quem arranca cabelos; somos nós, qualquer um de nós, que conseguimos trabalhar, mas ao mesmo tempo…”
Porque a COVID-19 “avivou pequenas distorções de personalidade, pequenos distúrbios. Há coisas que se manifestam mais”.
Há pessoas mais rudes e hostis. “Andamos zangados com meio mundo. Há cada vez mais pessoas adoentadas – e não vai lá com ‘respire fundo e oiça as ondas do mar’. É preciso aprender e ter ajuda de alguém, para gerirmos melhor os sintomas”.
Ficamos zangados, irritados, com “pessoas que nos tiram a luz porque lhes incomoda, porque é a luz que lhes falta”.
Os adolescentes, continuou o psicólogo, reagiram de forma “muito sofrida” à pandemia, exceptuando os muito tímidos ou mesmo anti-sociais – naquela altura isso foi uma bóia de salvação para eles, naquela altura, embora tivesse sido uma bóia temporária.
“Ei! Temos amigos” – durou 2 meses
Mas a pandemia trouxe uma novidade para muita gente: “Ei! Temos amigos”.
“As pessoas tornaram-se mais humanas, perceberam o óbvio: para estarmos bem, precisamos de estar bem uns com os outros, e quantos mais melhor”.
Em 2020 a expectativa era que percebêssemos que “andávamos todos parvos”. Mas essa ilusão “durou dois meses” e as pessoas “voltaram aos mesmos vícios”.
“A determinada altura caiu a máscara e aquilo que fica não são as pessoas humanas; ficam pessoas agrestes, viradas sobre si. Andamos completamente desmazelados, não enviamos abraços, não nos lembramos do último ‘gosto de ti’, não nos lembramos dos cinco minutos que perdemos – que nunca perdemos – em falar com os amigos”, continuou.
Eduardo Sá está preocupado com algo “muito inquietante”: fala-se com naturalidade sobre a “pandemia da solidão” num mundo com tantos meios de comunicação.
“Andamos todos engolidos por drogas leves”, comentou, antes de recordar um passado recente: “Passamos a vida a dizer que trabalhamos muito e que passamos muito tempo nas viagens para o trabalho; é tudo feiote, é verdade. Mas também é verdade que os nossos avós não tinham subsídios de férias, apoio à doença, micro-ondas, máquina de lavar roupa ou loiça, enviava-se uma carta que chegava sei lá quanto tempo depois… Era tudo tão mais duro“.
“Ficamos presos nas nossas justificações. As pessoas não estão todas deprimidas mas não estão a amar a vida que têm porque, se estamos bem, pomos intuitivamente a saúde mental à frente de tudo, damos prioridade ao que é prioridade”, disse o psicólogo.
Eduardo Sá repetiu o verbo “desmazelar” e abordou as redes sociais: “O tempo que os adultos perdem por dia a fazer scroll numa rede social… Pensamos que vão ser 5 minutos e já passaram 30. E não ligamos, se calhar, à pessoa que mora connosco: ‘Queria dizer que te amo e que é uma sorte estar contigo’. Gastámos 3 minutos nessa conversa e ainda sobram 27″.
Para o psicólogo, “andamos todos mais embrenhados em muitas coisas que temos à mão, sem fazer escolhas; e, quando não fazemos escolhas, estamos mais doentes do que o que pode parecer“.