A morte de Isabel II e a baixa popularidade de Carlos III acendeu dúvidas sobre a continuidade da monarquia, tanto no Reino Unido como na Commonwealth. Vários grupos republicanos acreditam que este é o momento para se acabar com a instituição, que já está no poder há mais de 1000 anos.
Aos 96 anos e com 70 de reinado, a eterna rainha Isabel II morreu esta quinta-feira — e consigo foi também muito do fascínio em torno da monarquia britânica.
Se para muitos a família real é um símbolo intrínseco do Reino Unido e é fundamental para a identidade britânica, há também cada vez mais movimentos políticos que consideram que está na hora de se acabar com esta instituição milenar e que o país deve passar a eleger o seu chefe de Estado.
Nas palavras de Graham Smith, líder do grupo Republic, “a rainha é a monarquia para a maioria das pessoas” e o futuro da família real estará em “sério risco” após a sua morte. “Carlos pode herdar o trono, mas não vai herdar a consideração e o respeito que são dados à rainha”, acrescenta.
Numa altura em que a população britânica sofre com o disparar da inflação e com os serviços públicos degradados, os Republicanos argumentam que inaceitável que os contribuintes estejam a financiar o estilo de vida opulento e luxuoso da família real.
De acordo com os dados da família real, geralmente a instituição custa apenas cerca de uma libra por ano a cada britânico. No entanto, o Republic argumenta que estas contas não incluem a segurança que fica a cargo da Polícia Metropolitana, que é paga pelos contribuintes, e estima que o valor que é verdadeiramente desembolsado pelos britânicos ronda os 350 milhões de libras por ano.
As obras de remodelação do Palácio de Buckingham também fizeram os gastos em 2021 disparar 17% em relação ao ano passado.
Os defensores da monarquia argumentam, no entanto, que a família real se paga a si mesma com o dinheiro que rende à economia britânica. A atenção dada a eventos como casamentos reais, nascimento de bebés ou as celebrações do Jubileu de Platina de Isabel II rendem centenas de milhões de libras ao sector turístico britânico e alimentam toda uma indústria de tablóides.
Por outro lado, os Republicanos defendem que o turismo até cresceria se a monarquia fosse abolida, já que os castelos e palácios onde os nobres vivem actualmente seriam totalmente abertos ao público e dão a França, que é o país mais visitado do mundo, como exemplo. Só o Palácio de Versalhes recebe cerca de oito milhões de visitantes todos os anos.
Dado o secretismo e a dificuldade em encontrar números concretos sobre o que a monarquia custa e o que rende ao Estado, as disputas económicas entre os monárquicos e republicanos não têm fim à vista.
“Vai contra todos os princípios democráticos”
Mas este está longe de ser o único argumento contra a continuação da monarquia. Nas site do Republic, a mensagem é clara. “É simples: cargos públicos hereditários vão contra todos os princípios democráticos. E por não podermos responsabilizar a rainha e a sua família nas urnas, não há nada que os impeça de abusar dos seus privilégios ou simplesmente desperdiçar o nosso dinheiro”, criticam.
As recentes revelações das investigações ao mecanismo do consentimento da rainha também vieram pôr em causa a ideia de que a chefe de Estado era uma figura meramente representativa.
Segundo as regras Isabel II tinha o direito de aprovar ou reprovar qualquer proposta legislativa que interferisse com os seus poderes públicos, a sua fortuna ou as suas propriedades ainda antes de o Governo levar as leis a votos no Parlamento. O secretismo em torno deste procedimento alimentou ainda mais a desconfiança sobre a verdadeira dimensão da influência política da rainha.
Estima-se que Isabel II e o Príncipe Carlos já tenham interferido em mais 1000 leis. Algumas das alterações garantiram isenções de impostos à família real, abriram excepções em leis de protecção ambiental ou tiveram o objectivo de ocultar a fortuna pessoal da rainha.
A monarca também era imune a mais de 160 leis e a própria polícia não pode entrar nas suas propriedades sem uma autorização especial.
Polémicas com André, Meghan e Harry
As polémicas com o Príncipe André e as suas ligações à rede de tráfico sexual de menores de Jeffrey Epstein, também não ajudam. Virginia Giufre, uma das vítimas de Epstein, acusou o filho de Isabel II de a ter violado quando esta ainda era menor de idade, tendo sido aberta uma investigação nos Estados Unidos.
No entanto, André nunca colaborou com o FBI e acabou por chegar a acordo com Giufre fora do tribunal, pagando-lhe mais de 14 milhões de euros.
Desde então que o príncipe foi afastado da vida pública e perdeu os títulos, mas a sua aparente impunidade só veio reforçar a ideia na opinião pública de que a família real beneficia de privilégios que não são dados aos comuns dos mortais, mesmo quando estão em causa acusações de crimes graves.
O príncipe Harry e a esposa Meghan Markle também já fizeram correr muita tinta nos jornais britânicos. Se para uns são o símbolo da mentalidade egoísta da monarquia — já que se queixaram de ter de passar a pagar pela própria segurança quando abandonaram os deveres reais — para outros são vítimas de uma instituição arcaica e, de acordo com as acusações bombásticas que fizeram na entrevista com Oprah Winfrey, racista.
“Carlos é polémico, não tem reservas e é impopular. O Príncipe André é uma pessoa de interesse numa investigação criminal. E Harry e Meghan estão a mostrar que a monarquia não é só má para os britânicos, também é má para os membros da realeza”, atira o Republic.
De acordo com uma sondagem de Maio da YouGov, 27% dos britânicos apoiam a abolição da monarquia, uma grande subida em relação aos 15% que têm sido a média nos últimos 20 anos.
Os mais jovens opõem-se ainda mais à continuação da família real no poder — abaixo dos 25 anos, a percentagem já dispara para 40%. Apesar de o movimento republicano ser mais contido em Inglaterra, tem mais força na Escócia e na Irlanda do Norte, já que grande parte da população destes dois territórios também defende a saída do Reino Unido.
Commonwealth desligada da monarquia
Não é só no Reino Unido que a conversa sobre a abolição da monarquia está a crescer, já que várias nações da Commonwealth também têm ambições republicanas e pretendem eleger um chefe de Estado que esteja mais ciente da realidade do seu país. De momento, 14 dos 54 membros da Commonwealth têm o rei ou rainha britânicos como chefe de Estado.
Meras horas após a morte de Isabel II, os burburinhos já começaram na Austrália. Adam Bandt, líder dos Verdes, defendeu a instauração de uma República na mesma mensagem onde deixou as condolências pelo óbito da monarca.
“Descanse em paz, rainha Isabel II. Os nossos pensamentos estão com ela, a sua família e todos os que a amaram. Agora a Austrália tem de seguir em frente. Precisamos de nos tornar uma República“, defendeu.
Rest In Peace Queen Elizabeth II.
Our thoughts are with her family and all who loved her.
Now Australia must move forward.
We need Treaty with First Nations people, and we need to become a Republic.
— Adam Bandt (@AdamBandt) September 8, 2022
O senador Mehreen Faruqi, do mesmo partido, foi ainda mais longe: “Não posso fazer o luto de uma líder de um império racista construído sobre vidas e terras roubadas e sobre a riqueza dos povos colonizados. Somos lembrados da necessidade de um Tratado com as Primeiras Nações, justiça e reparações para as colónias britânicas e de nos tornarmos uma república”.
O novo Governo Trabalhista do país também já indicou que pretende fazer um referendo à possibilidade de a Austrália se tornar uma República caso seja eleito para um segundo mandato — e a morte da rainha pode dar um impulso a esta intenção.
A Austrália é um peso pesado da Commonwealth e a sua perda seria um pesado golpe para o seu novo rei, Carlos III. Na vizinha Nova Zelândia, a conversa também está a ganhar força. A primeira-ministra Jacinda Ardern disse em 2021 que acredita que o país se tornará uma república ainda durante a sua vida.
O deputado Rawiri Waititi também escreveu no Twitter esta sexta-feira que a morte de Isabel II deixa um “enorme vazio” e que vai “causar debate”.
Nos países das Caraíbas, o sentimento anti-realeza é ainda mais forte, já que está intrinsecamente ligado à luta anti-racista e anti-colonista. William e Kate enfrentaram uma onda de protestos durante a sua viagem à região em Março, com alguns grupos de activistas a exigir reparações pela escravatura, e até tiveram de cancelar alguns dos eventos previstos na agenda.
Antes da sua visita à Jamaica, uma carta aberta endereçada aos Duques de Cambridge assinada por mais de 100 líderes locais também lançou farpas à monarquia. “Durante os seus 70 anos no trono, a sua avó não fez nada para reparar o sofrimento dos nossos antepassados que aconteceu durante o seu reino ou durante o período em que os britânicos traficaram e escravizaram africanos“, criticaram.
Barbados, que era conhecida como a “pequena Inglaterra“, também deu força a este movimento quando se tornou uma república em Novembro de 2021. Sandra Mason, a nova Presidente do país, disse na altura que tinha chegado a hora do país “deixar de vez o seu passado colonial para trás“. Há já 396 anos que a coroa britânica reinava no território.
Carlos III conta assim já com grandes desafios meras horas depois de ter ascendido ao trono.