“Senti-me na inquisição”. Bolsonaristas criam listas de apoiantes do PT e geram terror

Ricardo Stuckert / Instituto Lula; Marcos Corrêa / PR; Global Panorama / Flickr; Pixabay

Pouco após o primeiro turno das eleições, uma pergunta chamou à atenção da cabeleireira Monika Ganem.

“Uma cliente ligou para perguntar a um profissional do meu salão se eu estava a trabalhar para o Lula. Ele respondeu: ‘claro que não'”, conta a empresária, que há 30 anos é dona de um salão de beleza em Maringá (PR).

Dias depois, descobriu que o seu estabelecimento estava numa “lista de petistas” — apoiantes do PT — que eleitores de Jair Bolsonaro (PL) elaboraram para boicotarem.

Senti-me na fogueira da inquisição ou nos porões da ditadura militar”, revela a cabeleireira.

Monika frisa que nunca declarou votar em Lula ou em qualquer candidato. “Mesmo que eu me tivesse manifestado publicamente, estaria no meu direito. Eu vejo esse tipo de perseguição como uma violência irremediável, já que a Constituição nos assegura o direito de pensar e expressar os pensamentos.”

Uma situação parecida foi vivida pelo cirurgião plástico Michel Patrick, de Cuiabá (MT). Viu o seu nome citado numa lista semelhante em Mato Grosso.

“Isso tem, lógico, uma conotação de segregação e exclusão, com a mensagem: não façam negócio com esse tipo de gente. Situações desse tipo abalam as pessoas, fazendo com que se sintam ameaçadas”, diz.

O médico também afirma que nunca manifestou o voto em Lula. “Não sou petista, isso torna-se impossível pois não sou partidário, não tenho político de estimação e não falo sobre política nos meus canais de comunicação”.

Os dois casos ilustram uma situação que se tornou recorrente nas últimas semanas em diversas regiões do país: as inúmeras “listas de petistas” que são partilhadas em grupos bolsonaristas em forma de repúdio, com incentivo para que as pessoas não frequentem esses lugares ou não contratem esses profissionais.

Entre os alvos destes tipos de listas há estabelecimentos ou profissionais de diferentes áreas. Até mesmo servidores públicos foram mencionados.

Monika optou por não denunciar a situação às autoridades, pelo menos por agora. Já Michel registou um boletim de ocorrência e avalia as medidas judiciais que podem ser aplicadas.

“Um discurso de ódio pesado que te atinge”

Além dos profissionais liberais ou donos de estabelecimentos que dizem evitar manifestar-se sobre política, estas listas também mencionam aqueles que são publicamente a favor do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.

Para a comerciante Letícia (nome fictício), dona de um restaurante vegano em São Paulo, a manifestação de apoio ao PT e contra o atual presidente Jair Bolsonaro sempre fez parte da rotina do seu estabelecimento. “Talvez eu tenha sido ingénua em não imaginar o que isso poderia causar.”

Já havia ouvido críticas pontuais sobre o seu posicionamento político, mas nunca acreditou que viveria algo semelhante ao que enfrentou quando uma página bolsonarista mencionou o seu restaurante numa lista de estabelecimentos petistas.

A partir de então, o estabelecimento dela começou a receber inúmeras ofensas na rede. “É uma coisa muito descontrolada, um discurso de ódio pesado que te atinge. Eu senti-me invadida e acuada. É uma invasão de privacidade, um desrespeito enorme ao pensamento de cada um e à democracia”, diz a comerciante.

“Mesmo que seja só um assédio virtual, partilharam também a nossa morada e os nossos rostos, então deu medo de haver algum assédio físico também. É a proliferação de uma cultura antidemocrática e violenta“, acrescenta o seu sócio.

No meio às ofensas, partilharam a situação no perfil do estabelecimento no Instagram e também passaram a receber diversas mensagens de carinho. “Quando comecei a ver o apoio das pessoas, senti-me um pouco mais tranquila. Mas antes disso mexeu bastante comigo e até me deu tremores“, conta.

Os dois fizeram queixa e, apesar de tudo o que enfrentaram, não se arrependem de manifestar publicamente apoio a Lula. “Espero que isto caia no esquecimento e que possamos trabalhar e ter a nossa vida. Não vou deixar de publicar e apoiar a democracia”, declara Letícia.

Lista com funcionários públicos

Não são apenas estabelecimentos ou profissionais liberais que são mencionados nestas listas. Há também situações em que os funcionários públicos foram citados, como é o caso da professora Roberta (nome fictício), que mora numa cidade pequena no interior do Paraná.

“Na quinta-feira passada, recebi uma mensagem de WhatsApp de que estava na lista de pessoas que votaram no PT contra o atual governo. Nesta lista, diziam para as pessoas nos procurarem se houvesse qualquer problema no município, porque nós que votamos no PT e iríamos resolver. Estavam a rotular-nos mesmo, como na Alemanha nazi“, conta.

“Senti-me como uma criminosa com o meu nome na lista. Sou uma cidadã de bem, trabalho e sou muito rigorosa. Cumpro todos os meus deveres e pago as minhas contas”, acrescenta.

Na lista constavam cerca de 40 nomes, incluindo, além de alguns funcionários públicos, donos de bares ou restaurantes na cidade, pedreiros e taxistas. Por ser uma cidade pequena, diz que ficou com medo de sair de casa por alguns dias, por temer que fosse encarada de modo diferente pelas pessoas.

“Gostaria que as pessoas entendessem que esta lista é grave, simplesmente estão a colocar o rótulo na pessoa porque votou noutro candidato. É muito grave, porque estamos numa democracia”, declara.

As consequências na Justiça

Os responsáveis pelas listas ou por divulgá-las podem ser punidos pela Justiça. O especialista em Direito Digital e coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) Marcelo Crespo explica que estas listas podem gerar, além do temor de prejuízo financeiro, o medo de violência física ou moral.

“Essas condutas estão inseridas num contexto de violência política em razão da polarização e destes posicionamentos extremos”.

Cada caso deve ser analisado individualmente para avaliar a forma como a lista foi divulgada e a repercussão dela. “Mas, em teoria, pode configurar difamação, cuja pena normalmente é convertida em prestação de serviços à comunidade. Essa pena pode ser aumentada em até um terço, se for cometida num grupo de WhatsApp ou em redes sociais, porque isso facilita a divulgação da difamação”.

“A (caracterização da) difamação quer proteger a honra dessa pessoa, a imagem projetada dessa pessoa na sociedade. No momento de manifestação de ódio político, a divulgação não autorizada de quem votou num candidato pode afetar a sua honra, inclusive no contexto da sua atividade económica”, acrescenta.

“Não importa se fulano realmente votou no Lula, falar a verdade nesse cenário também pode ser crime contra a honra“, declara o especialista. “Além disso, nesses casos também pode haver ação por reparação de danos morais e/ou materiais”, completa.

É possível exigir na Justiça que as redes sociais ou aplicativos de mensagem informem a origem dessas listas. “A rede social ou o aplicativo de mensagem é o veículo de transmissão da mensagem. Em regra, não responde por nada. Só responde se houver determinação judicial para que apague uma publicação e caso essa rede deixe de tomar essa providência”.

Os casos de como difamação podem ser punidos com uma pena entre um e três anos de prisão. Além disso, é possível pedir uma indemnização por danos morais ou materiais e tentar descobrir a origem da lista.

ZAP // BBC

Siga o ZAP no Whatsapp

Deixe o seu comentário

Your email address will not be published.