
Os comandantes de Auschwitz, Richard Baer e Rudolf Hoess (nas pontas). No centro, Josef Mengele, médico de Auschwitz, conhecido como Anjo da Morte.
Um novo banco de dados revela os destinos e o sofrimento das vítimas de experiências médicas forçadas durante a era nazi, e alerta para a continuidade da utilização dos resultados no pós-guerra.
Entre as atrocidades cometidas pelos nazis encontram-se as experiências médicas em seres humanos, sobretudo com judeus, prisioneiros de guerra, ciganos e pessoas com deficiência, que incluíram testes com patógenos, toxinas e medicamentos, remoção de órgãos, congelação controlada e esterilização.
Dezenas de milhares de pessoas foram vítimas destas experiências. Um novo banco de dados online lançado na Alemanha inclui os perfis detalhados de 16 mil delas. Contém ainda mais de 13 mil perfis de pessoas cujos destinos permanecem incertos.
Esta é a primeira vez que se torna disponível um acesso sistemático aos nomes e dados biográficos destas vítimas, às experiências realizadas e às instituições envolvidas. O banco de dados foi criado pela Academia de Ciências Alemã Leopoldina e pela Sociedade Max Planck. Cientistas da sua antecessora, a Sociedade Kaiser Wilhelm, realizaram investigações durante a era nazi com humanos que, sem dúvida, resultaram dos assassinatos em massa perpetrados pelos nazis.
Racismo como justificação
Mais de 200 instituições na Alemanha e na Europa estiveram envolvidas nos crimes médicos cometidos durante a era nazi. A extensão total destas atrocidades foi revelada por um relatório concluído em 2023 pela Comissão Lancet sobre Medicina, Nacional-Socialismo e Holocausto.
Este relatório detalhado demonstra que médicos em diversas funções utilizaram a pertença a uma “raça” como justificação para os crimes cometidos e para a execução de esterilizações forçadas, programas de eutanásia e a seleção de pessoas em larga escala. Apenas alguns médicos e investigadores tiveram de responder pelos seus crimes após a Segunda Guerra Mundial.
Dados usados até hoje
Com o fim da guerra, alguns cientistas e instituições continuaram o seu trabalho sem serem questionados ou contestados. Representantes da medicina nazi, por exemplo, nos Institutos Kaiser Wilhelm, puderam continuar a trabalhar na Alemanha Ocidental após 1945.
Também os programas de medicina aeronáutica e espacial da NASA apoiaram-se na experiência de pessoas que tinham adquirido os seus conhecimentos através de experiências em campos de concentração nazis, segundo o historiador médico Herwig Czech, da Universidade Médica de Viena, um dos fundadores da Comissão Lancet sobre Medicina, Nacional-Socialismo e Holocausto.
Sobretudo no pós-guerra, alguns dos dados obtidos durante a era nazi foram utilizados sem reflexão, em parte porque raramente se discutiam as circunstâncias das experiências ou a origem dos dados era ocultada. Dados de experiências humanas sobre, por exemplo, tolerância ao frio, tratamentos com antibióticos ou os efeitos do gás fosgénio — um gás altamente tóxico usado como arma química durante a Primeira Guerra Mundial — foram publicados, repetidamente citados e utilizados em periódicos médicos após a Segunda Guerra Mundial.
“Mesmo em 1988, cientistas da Agência de Proteção Ambiental dos EUA propuseram utilizar os resultados das experiências com fosgénio de Otto Bickenbach em prisioneiros do campo de concentração de Natzweiler-Struthof como base para experiências em animais relacionadas com as regulamentações sobre exposição ao fosgénio – esta ideia só foi abandonada após protestos de um grupo de colegas da agência”, relata a professora Sabine Hildebrandt, da Harvard Medical School, em Boston.
Revisão tardia
Áreas da genética humana, da psiquiatria e da antropologia médica também utilizaram metodicamente práticas desenvolvidas e aplicadas durante o período nazi.
“Houve um grau relativamente elevado de continuidade nas áreas de anatomia e neuropatologia, pois grandes coleções neuropatológicas foram criadas durante o período nazi, às quais os investigadores continuaram a recorrer muito depois da guerra”, afirma Czech.
O “valor científico” destas experiências desumanas é limitado e, segundo o historiador médico, praticamente não desempenha qualquer papel na medicina intensiva atual. No entanto, amostras de tecido, preparados de órgãos humanos ou cortes cerebrais obtidos de vítimas do nazismo continuaram a ser usados em institutos de investigação de língua alemã e para fins pedagógicos mesmo décadas após 1945.
Só a partir da década de 1980, ou mesmo nos anos 90, houve uma revisão sistemática destes procedimentos e o enterramento dos restos mortais devido à pressão política e social. Um exemplo bem conhecido são as coleções da Sociedade Max Planck, cujo processo só começou em 1997.
A maioria das técnicas e dados oriundos da era nazi praticamente já não é relevante e ou utilizada, segundo Hildebrandt. “Mas isso não significa que os conhecimentos destas investigações não tenham sido incorporados ao conhecimento médico geral e continuem a influenciar, por exemplo, livros didáticos de disciplinas médicas específicas.”
Mesmo que a reflexão crítica e o debate ético sobre o tratamento destas descobertas sejam norma na medicina e na investigação, continua a ser necessária uma maior consciência sobre o contexto em que foram obtidas as informações usadas em algumas publicações científicas, afirma Hildebrandt. “A identificação e contextualização por si só não são suficientes. Devem ser complementadas com o nome das vítimas, as suas biografias e o seu sofrimento.”
Um modelo para outros países?
A investigação médica forçada e as experiências em seres humanos não são uma exclusividade do nazismo – existiram antes, continuaram depois e ocorreram em todo o mundo, sobretudo no contexto colonial.
No entanto, o debate crítico frequentemente não existe ou é inadequado. “E esta é uma das razões pelas quais a Comissão Lancet foi criada: a medicina no nazismo é o exemplo mais bem investigado e mais extremo de transgressões médicas ocorridas sob regimes autoritários”, diz Hildebrandt.
Alguns países, especialmente aqueles com passado colonial, estão a assumir essa responsabilidade. Outros, como o Japão, que cometeu atrocidades médicas e conduziu experiências humanas em prisioneiros de guerra e na população civil na China, Coreia e outros territórios ocupados, ainda não o fizeram.
“Outros países e épocas têm outras histórias, que muitas vezes ainda precisam de ser investigadas exaustivamente para esclarecer a sua influência no presente”, diz Hildebrandt. “Aqui, nos Estados Unidos, finalmente existem mais pesquisas sobre a história da medicina e da escravatura, mas o atual governo está a tentar inverter isso.”
// DW