Desde a edição genética ao uso da robótica para dar novas aptidões ao corpo humano, a evolução da ciência indica que nos vamos tornar “transhumanistas” — mas esta tendência esconde vários riscos.
Todos os dias saem mais notícias sobre avanços científicos na edição genética e na computação. Desde o caso polémico do médico He Jiankui, conhecido como “Dr. Frankenstein”, passando por computadores do futuro alimentados com células humanas, impõe-se uma questão: será que os humanos do futuro serão ciborgues transhumanistas?
O transhumanismo refere-se à capacidade de ultrapassarmos os limites que o seres humanos têm através da tecnologia, por exemplo, apurando mais os nossos sentidos, editando os genes para nos tornarmos mais resistentes a doenças, combatendo o envelhecimento ou aperfeiçoando os nossos corpos para ganharmos capacidades novas, como membros robóticos ou supervelocidade.
Com o passar das décadas, esta possibilidade está a sair dos filmes de ficção científica e está lentamente a tornar-se realidade. Mas só porque podemos fazer algo, isso não quer dizer que devemos — e o transhumanismo levanta muitas questões éticas.
O aperfeiçoamento é o nosso “dever”
O conceito de transhumanismo foi baptizado pelo biólogo evolutivo Julian Huxley, irmão do escritor Aldous Huxley, autor do famoso livro “Admirável Mundo Novo”, e neto de Thomas Henry Huxley, cientista que ficou conhecido pela sua defesa guerrida da teoria da selecção natural de Darwin.
Huxley acreditava que a Humanidade tinha muito potencial por explorar, mas que se deixava limitar pelas fraquezas da sua natureza. No entanto, era o nosso dever usar os avanços científicos para nos libertarmos destas amarras e para conseguirmos “a realização total das possibilidades do Homem“.
“Terminamos muito bem a exploração geográfica da terra; levamos a exploração científica da natureza, tanto sem vida quanto viva, a um ponto em que os seus contornos principais se tornaram claros; mas a exploração da natureza humana e das suas possibilidades mal começou. Um vasto novo mundo de possibilidades desconhecidas aguarda pelo seu Colombo”, escreveu Julian Huxley em 1957.
O cientista tornou-se rapidamente interessado na eugenia e até presidiu a Sociedade Britânica de Eugenia entre 1959 e 1962. Apesar de se opor à exterminação das pessoas “inaptas“, apoiava programas para encorajar pessoas de “classes médias profissionais” a ter mais filhos, relata o IFLScience.
Tal como criamos gado especificamente para nos dar carne mais saborosa ou editar plantas para serem mais resistentes a pragas, também podemos criar humanos para serem mais inteligentes ou mais resistentes a doenças.
O transhumanismo já é uma realidade?
O avanço da ciência já nos permite fazer coisas que Huxley nem conseguiria imaginar nos anos 50. Já conseguimos editar os nossos genes de uma forma tão permanente que estas mudanças passam para os seus filhos.
Em Novembro de 2018, o biofísico chinês He Jiankui anunciou que criou os primeiros bebés humanos editados geneticamente, Lulu e Nana. Usando a técnica CRISPR, o cientista editou o genoma das gémeas quando eram embriões para que desenvolvessem uma protecção contra o VIH no gene CCR5, que codifica a proteína que é atacada pelo vírus.
Juankui acabou por ser preso durante três anos e foi alvo de duras críticas por parte da comunidade científica, já que não se sabe que efeitos é que a edição genética pode ter na saúde das crianças ou dos seus descendentes. Lulu e Nana ainda estão vivas e, de momento, são perfeitamente saudáveis.
O biofísico já saiu da prisão e promete continuar a dedicar-se à investigação e ao combate às doenças, mas de forma mais contida. “Aprendi que fiz as coisas muito depressa. As minhas próximas investigações serão transparentes e abertas a todo o mundo. Os avanços serão publicados nas redes sociais e existirá uma equipa internacional de cientistas que vai rever o nosso trabalho”, promete Jiankui.
O polémico cientista quer agora angariar 137 milhões de euros de multimilionários para financiar a sua investigação em tratamentos para doenças raras. A ideia é criar tratamentos genéticos acessíveis a todos. He Jiankui garante ainda que vai curar uma doença rara num três anos.
Campo de minas ético
Para além das dúvidas no plano legal e médico, muito do receio em torno da edição genética feita por Jiankui é caixa de Pandora que abre no plano da bioética. Se o objectivo é “aperfeiçoar” os seres humanos, quem é que decide o que é e não é uma imperfeição? Quais são os critérios? Podem as características de certos grupos étnicos ser consideradas defeitos genéticos?
Este tema foi até abordado na aclamada série Black Mirror. No episódio “Men Against Fire” — alerta de spoiler — acompanhamos um soldado numa missão de caça a monstros humanóides apelidados de “baratas” pela população.
Mais tarde, é revelado que as “baratas” eram, na verdade, humanos com genes “indesejáveis”, tendo os soldados recebido um implante cerebral que os fazia ver as “baratas” como monstros, de forma a aumentarem a sua letalidade. O episódio foi comparado à desumanização que vários regimes racistas, como a Alemanha nazi, fizeram de certas populações, como os judeus.
Podem os pais no futuro “quitar” um bebé da mesma forma que quitamos um carro? Será que, para além das doenças, características como a inteligência, aspecto físico ou capacidades atléticas também poderão ser personalizadas?
Impõem-se ainda questões sobre quem teria acesso a estas tecnologias. Se estas iniciativas partirem de empresas privadas, o mais provável é que só os mais ricos tenham meios para beneficiar destes serviços, o que pode agravar ainda mais as desigualdades económicas e sociais e condenar os mais pobres a sofrer com as doenças que os mais ricos eliminaram do seu genoma décadas antes.
Há até já cientistas que especulam se, no próximo milhão de anos, pode surgir uma guerra entre os “verdadeiros humanos” as espécies “pós-humanas” de ciborgues meio-humanos e meio-robôs. Por enquanto, é só especulação, mas quem sabe?