Há 60 anos, quase acabámos com os percevejos. Depois, eles começaram a mudar

Levados à beira da extinção, os percevejos adaptaram-se — e agora os pesticidas são quase inúteis contra estes insetos, que voltaram mais fortes, mais inteligentes e mais resistentes do que nunca. O que é que aconteceu?

Na década de 1960, os percevejos pareciam condenados. Depois de séculos a viver na sombra e a atormentar a humanidade, estávamos muito perto de os erradicar.

A nossa principal arma eram pesticidas como o DDT e os piretróides, que se revelaram devastadoramente eficazes. Mas atualmente estas pequenas pragas estão de volta — mais fortes, mais inteligentes e mais resistentes do que nunca.

O que é que aconteceu?

O ressurgimento dos percevejos de cama tornou-se uma dor de cabeça global, uma vez que infestam casas, hotéis e espaços públicos.

Investigações recentes revelaram que os percevejos, Cimex lectularius, desenvolveram uma série de defesas genéticas sofisticadas. Estas defesas tornam-nos quase invencíveis contra os produtos químicos que, em tempos, pareciam levar à sua extinção.

Mas os autores de um novo estudo, recentemente publicado na revista Insects, sequenciaram o genoma dos percevejos, descobrindo aquilo a que ainda são vulneráveis.

Mutação e adaptação

O ataque químico às pragas começou a sério após a Segunda Guerra Mundial. O famigerado DDT, ou diclorodifeniltricloroetano, e outros pesticidas sintéticos foram pulverizados livremente em casas, hotéis e edifícios públicos.

Os percevejos, que se alimentam de sangue humano e se escondem em fendas, costuras e colchões, eram vulneráveis a estes químicos. Durante um breve período, o mundo viveu uma era quase sem percevejos, recorda o ZME Science.

Mas essa vitória foi de curta duração. Nas décadas de 1990 e 2000, os relatos de infestações de percevejos começaram a aumentar novamente. Os hotéis das grandes cidades enfrentaram ondas de queixas.

Desta vez, porém, os percevejos eram diferentes e revelaram-se ser cada vez mais difíceis de combater. Os pesticidas que outrora tinham feito maravilhas quase não os abrandaram.

“Os percevejos expandiram-se globalmente nas últimas duas décadas, causando vários riscos para a saúde. As mutações nos seus genes permitira que os percevejos desenvolvessem resistência aos inseticidas“, escrevem os autores do estudo.

Os investigadores, liderados por Hidemasa Bono da Universidade de Hiroshima, sequenciaram os genomas de percevejos suscetíveis e resistentes aos pesticidas, e encontraram centenas de mutações genéticas específicas dos percevejos resistentes.

Estas mutações não eram aleatórias. Ofereciam resistência aos piretróides – o pesticida mais utilizado atualmente contra os percevejos.

Insetos irritantes

Os percevejos são micropredadores que se alimentam de sangue, normalmente à noite. Não transmitem doenças aos seres humanos, mas a sua picada pode causar erupções cutâneas, bolhas e reacções alérgicas.

Aquilo a que chamamos “percevejos” são, na verdade, duas espécies: Cimex lectularius (o percevejo comum) e Cimex hemipterus, que se encontram principalmente nos trópicos.

Estão connosco há milhares de anos. Foram encontrados fósseis de percevejos no Egito que datam de há mais de 3500 anos.

Nos últimos anos, tornaram-se tão resistentes aos pesticidas que os especialistas costumam recomendar métodos de controlo não químicos —  por outras palavras, a melhor forma de se livrar dos percevejos é aspirar e deitá-los fora. A segunda melhor opção é remover todos os tecidos e lavá-los a mais de 60 graus Celsius.

Não há provas de que uma combinação de métodos não químicos com inseticidas seja mais eficaz do que apenas os métodos não químicos.

Colónia de percevejos (Cimex lectularius) num colchão

A resistência não aconteceu de um dia para o outro. Evoluiu ao longo de décadas, impulsionada pelo uso ineficiente de pesticidas. Por vezes, uma população de percevejos foi exposta a pesticidas, mas alguns indivíduos sobreviveram.

Estes sobreviventes reproduziam-se, passando os seus genes de resistência para a geração seguinte. A exposição repetida aos pesticidas actuou como um filtro, permitindo que apenas os percevejos mais resistentes se desenvolvessem.

Eventualmente, as estirpes resistentes dominaram a população. Este processo, conhecido como “pressão selectiva“, é um exemplo clássico da evolução em ação.

“Determinámos a sequência do genoma dos percevejos resistentes aos insecticidas, que apresentavam uma resistência 20.000 vezes superior à dos percevejos suscetíveis”, explica o primeiro autor do estudo, Kouhei Toga, investigador da Universidade de Hiroshima.

“Comparando as sequências de aminoácidos entre os percevejos suscetíveis e os resistentes, identificámos 729 transcrições com mutações específicas da resistência”, detalha o investigador.

O que é que mudou?

Sequenciar um genoma é um pouco como montar um enorme puzzle, muitas vezes com milhões e milhões de peças. O principal avanço neste caso foi o método de sequenciação de leitura longa, que permite sequenciar longas cadeias de ADN ou ARN de uma só vez, sem as dividir em fragmentos mais pequenos.

Os investigadores obtiveram uma imagem quase total dos dois genomas dos insetos resistentes e não resistentes, atingindo uma cobertura de cerca de 98% para o primeiro e de 95% para o segundo.

Uma das principais descobertas foi o papel dos canais de sódio dependentes de voltagem. Estes canais são críticos para a função nervosa e os piretróides actuam perturbando-os, causando paralisia e morte.

No entanto, os percevejos resistentes tinham mutações nestes canais de sódio, tornando-os menos vulneráveis aos efeitos do pesticida. Essencialmente, o pesticida já não conseguia “prender-se” ao seu alvo.

Para além dos canais de sódio, o estudo identificou alterações em genes relacionados com outros mecanismos de defesa.

Algumas mutações aumentaram a capacidade dos percevejos de metabolizar (e desintoxicar) os produtos químicos mais rapidamente. Outras destas mutações engrossaram o exoesqueleto, impedindo que os pesticidas penetrassem no corpo.

Em conjunto, estas duas adaptações formaram um escudo formidável contra os ataques químicos que até à alguns anos se revelavam devastadores para a espécie.

Alguns percevejos tinham mutações nos genes associados à acetilcolinesterase, uma enzima visada pelos pesticidas organofosforados e carbamatos. Estas mutações alargaram ainda mais o arsenal dos percevejos contra diferentes classes de produtos químicos.

Os investigadores esperam agora que este estudo nos possa ajudar a desenvolver pesticidas mais eficazes, identificando as mutações genéticas exactas que conferem resistência aos percevejos — e permitindo-nos, de novo, voltar a ter noites de sono descansadas sem receio de ter a companhia de convidados indesejados.

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