Os 50 anos da independência da Guiné-Bissau, na voz dos guineenses

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Da “tensa” chegada lusitana e escravatura às primeiras sementes da luta armada que levou à libertação, recordemos a caminhada da Guiné-Bissau até à independência, que aconteceu exatamente há 50 anos.

Foi neste dia, 24 de setembro, que a Guiné-Bissau se libertou do domínio colonial português, há 50 anos.

A 23 de setembro de 1973 decorreu, no Boé, a primeira Assembleia Nacional Popular e um dia depois foi proclamada unilateralmente a independência da Guiné-Bissau, resultado da luta armada liderada por Amílcar Cabral, assassinado em janeiro do mesmo ano, na Guiné-Conacri.

O país foi o primeiro das ex-colónias portuguesas a assumir-se como um estado soberano, embora Portugal só tenha reconhecido a sua independência um ano depois, a 10 de setembro de 1974, alguns meses após o 25 de Abril.

Mas a história da Guiné-Bissau começa antes da chegada dos portugueses. E depois da escravatura, da luta armada e da conquista da liberdade, ficam ainda sonhos por cumprir. Recordemos o passado, olhemos para o presente e imaginemos o futuro através de um resumo de reportagens e entrevistas da RFI alusivas à História do país e ao período da luta de libertação.

Guiné-Bissau: um território muito mais amplo

Segundo o historiador guineense Julião Soares Sousa, “a Guiné-Bissau, antes da chegada dos portugueses, era um território que não existia tal como o conhecemos hoje.”

“A Guiné-Bissau era um território enquadrado num âmbito geográfico que integrava vários impérios, nomeadamente o império do Mali e o império do Gana. Era um território muito mais amplo que incorporava vários territórios que nós conhecemos hoje como o Senegal e a Gâmbia“, sublinha o investigador.

Chegada lusitana não foi pacífica

Os portugueses e restantes europeus que chegaram àquela região não entraram em terreno virgem e o contacto com as populações locais foi, logo de início, marcado pela tensão e até pela violência.

“Temos tendência para pensar que os contactos, quando eles [os portugueses] chegam, são abraços, se calhar beijos. Não foi, porque foi, de facto, um encontro muito tenso”, começa por dizer.

“Um dos navegadores, por exemplo, Nuno Tristão, foi morto ali na costa da Guiné”, refere. “Naturalmente que houve aí um contacto intenso, mas que depois deu origem à fixação de alguns desses europeus, nomeadamente portugueses; essa fixação transforma-se depois na colonização que nós conhecemos sobretudo a partir do século XIX, que foi muito mais intensa do que antes”, conclui o universitário.

A escravatura

“Começaram os marinheiros a tirar os escravos que tinham trazido para os levarem como lhes fora mandado (…) uns tinham as caras baixas e os rostos lavados em lágrimas, outros gemiam dolorosamente, (…) outros lamentavam-se em forma de canto (..)”, lê-se sobre a chegada de escravos da Guiné a Portugal, na “crónica da Guiné” do historiador português Gomes Eanes de Zurara.

“Mas, para a sua dor ser mais acrescentada, chegaram os que estavam encarregados da partilha e começaram a separá-los uns dos outros, a fim de fazerem lotes iguais. Por isso havia necessidade de se separarem os filhos dos pais, as mulheres dos maridos e os irmãos uns dos outros (…). As mães apertavam os filhos nos braços para não lhes serem tirados”.

Até meados do século XIX, milhões de pessoas foram levadas à força da Guiné-Bissau para o continente americano, tendo inclusivamente sido criadas no século XVII grandes companhias de navegação e comércio como a Companhia de Cacheu e Rios da Guiné.

Eram lutas intensas. Mas com o apoio de alguns nativos nossos, nomeadamente pessoas de influência, chefes de aldeias (…). Às vezes, as pessoas influentes recebiam em troca alguns materiais, alguns produtos que faziam falta, nomeadamente arroz, espelhos, açúcar, óleo, tabaco, até roupas, em troca das pessoas. Certas pessoas, ao assumirem a consciência de que iam e que nunca mais voltavam, apresentavam resistência e começaram a organizar-se, criando focos de revolta”, conta o dirigente da ‘Ação para o Desenvolvimento’, Jorge Handem.

O responsável sublinha sobretudo que “a ‘Ação para o Desenvolvimento’ tem tentado convencer o Governo a recorrer ao tema da escravatura e da História como conteúdo curricular, devido à “muito pouca informação” presente nas escolas sobre as questões históricas do país.

As sementes da luta

No decorrer da primeira metade do século XX, começam a surgir algumas associações desportivas e culturais na Guiné-Bissau, mas eventuais vontades de afirmação identitária são reprimidas.

Sempre houve uma tendência para resistir à ocupação portuguesa que, depois, vai resultar na criação de alguns movimentos de carácter cívico e cultural, como por exemplo a Liga Guineense que foi criada em 1910 e que depois tem uma evolução claramente contrária àquilo que era a tendência do regime colonial, sobretudo na tentativa de criar escolas e bibliotecas para os negros“, comenta o investigador Julião Soares Sousa.

Nos anos 40, o regime de Salazar assume-se como potência colonial e funda em Lisboa a Casa dos Estudantes do Império, onde se concentram todos os estudantes vindos das chamadas “províncias ultramarinas”, com o intuito de incrementar, entre eles, o sentimento de pertença ao império colonial português. Acontece exatamente o contrário, refere Julião Soares Sousa.

“São daquelas contradições que são inerentes aos regimes e aos modos de produção”, diz, explicando que é no seio da Casa dos Estudantes do Império que “vão emergir ideias revolucionárias, sobretudo com uma aprendizagem prévia, por causa da influência de algumas organizações da esquerda portuguesa. A maior parte destes quadros ou “jovens coloniais” acabaram por integrar o mundo juvenil e é também neste quadro que fazem a sua formação política e ideológica”, explica.

É neste contexto que Amílcar Cabral, recém-formado em agronomia, envereda para o ativismo político que lhe iria valer uma vigilância apertada da ditadura portuguesa. Perto de 1956 é fundado o PAIGC, Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde.

Em 1959, a repressão de uma revolta de estivadores no porto de Pindjiguiti, em Bissau, que reclamavam melhores salários e condições de trabalho, resulta em pelo menos em 25 mortos, naquele que seria um momento decisivo de tomada de consciência para os independentistas.

O início da luta armada

Nos finais dos anos 50 e início da década de 60, numa altura em que tanto os vizinhos Senegal como a Guiné Conacri tinham acabado de alcançar as suas independências, tornava-se cada vez mais evidente para os setores independentistas da Guiné-Bissau que o país deveria igualmente libertar-se da tutela do colonialismo português.

Em 1961, um movimento concorrente do PAIGC, o MLG (Movimento de Libertação da Guiné) sabota o norte do país, mas o envio de reforços militares portugueses inibe veleidades de novos ataques.

Seria preciso aguardar até 1963 para que, após uma minuciosa preparação, com a entrega de armas e formação de combatentes, o PAIGC lançasse um primeiro ataque contra o quartel de Tite, no sul da Guiné-Bissau, dando início a uma guerra que só terminaria formalmente com o reconhecimento da independência do país por Portugal em 1974.

O recrutamento de forças faz-se em todo o lado: no campo, na cidade, fora do país. Todos têm um familiar preso ou envolvido na luta. Foi o caso do escritor guineense Ernesto Dabo que se envolveu no combate em Portugal, no início dos anos 70.

A situação em que estávamos a viver era inumana, injusta e nenhum indivíduo que crescesse, que evoluísse do ponto de vista cultural podia suportar uma situação daquelas com indiferença. Isto foi determinante porque eu tive a sorte de viver em Portugal com gente que não me fez sentir discriminado como era regra noutros países. Vivi normalmente com muita gente (…), de maneira que isso, contrariamente àquilo que poderia ter acontecido — eu me alienar e pensar que era de lá e que tinha outros privilégios e que já não era da Guiné-Bissau —, ajudou-me a perceber que a qualidade de vida que eu via lá, a atitude de respeito mútuo, eu pensei que tinha que ter isso também no meu país”, conta o autor.

O general Fodé Cassamá também entrou na guerra muito jovem, aos 17 anos. “Precisávamos de ser livres, estar fora do colonialismo. O papel da juventude era muito necessário. Foi o que me motivou a entrar na luta de libertação, como cidadão deste país”, refere o militar que, ao recordar o ambiente que se vivia na frente luta, conta que “se vivia em camaradas, segundo a situação que se apresentava” e que “era normal porque precisavam da independência”.

A morte de Cabral e a conquista da liberdade

Depois de várias tentativas falhadas, na noite de 20 de Janeiro de 1973, Amílcar Cabral foi morto à porta de sua casa em Conacri por elementos do seu partido. Ao anunciar no dia seguinte o seu assassinato, o Presidente da Guiné Conacri, Sékou Touré, apontou o dedo ao regime colonialista português.

Ainda hoje, as circunstâncias exatas que resultaram na morte de Cabral geram debate entre os historiadores. O que é certo é que este assassinato causou uma onda de choque e divisão.

Francisca Pereira, antiga professora da escola piloto de Cabral, recorda os dias vividos e uma audiência com Cabral em Moscovo, em que este lhe disse: “se matarem o Amílcar, vai aparecer mais Amílcares”, conta.

Agnelo Regala, antigo redator da Rádio Libertação fala de um momento de muita consternação mas também de determinação.

“O assassinato teve um impacto enorme. Houve um período de quebra moral da parte dos combatentes, porque ninguém esperava que isto acontecesse, embora no seu último discurso, Amílcar Cabral tivesse deixado claro que haveria sempre essa hipótese, mas deixando claro também que nem a sua morte provocaria a paragem da luta de libertação nacional“, relata.

Meses depois do assassinato de Cabral, no dia 24 de Setembro de 1973, nas matas de Madina do Boé, no leste do país, Nino Vieira, primeiro presidente da Assembleia Nacional Popular, proclamou a independência do país e a consagração da sua Constituição, o ponto culminante de um processo durante o qual os habitantes das zonas libertadas tinham elegido os seus representantes no ano anterior.

Foi um dia de esperança que deixou “claro que, durante a guerra de libertação não foi só a guerra pela libertação do país, não foi só a componente armada, mas também a capacidade que o PAIGC teve de construir nas zonas libertadas uma vida com alguma normalidade”, sublinha o deputado e líder da União para a Mudança, Agnelo Regala.

Neste contexto, não restava nada a Portugal senão negociar. Contudo, só após o 25 de Abril de 1974 é que a situação se esclareceria, ao cabo de um bailado diplomático.

“Com a revolução dos cravos e a mudança do regime, foi praticamente impossível a alternativa de continuar a guerra.”, diz o historiador Julião Soares Sousa.

// RFI

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1 Comment

  1. É preciso contar a história do desenvolvimento da linha temporal. O tratado de Tordesilhas, a partida para a descoberta do mundo desconhecido até então. A escravatura foi um erro? Sim foi, a humanidade aprendeu com os erros cometidos… aqui, temos de reflectir e olhar para o que se passa no mundo (pessoalmente sinto que existe falta de respeito e a luta pelo poder continua como se via nos tempos das descobertas, com a diferença de tecnologia no armamento). É preciso implementar a meritocracia e o gosto pelo trabalho, as sociedades mais desenvolvidas regem-se pelo liberalismo, os estudiosos dizem que existe cromossoma xy e xx. Para mim, fica a falta de educação e os fracos governantes ao lo go do tempo, quem trabalha merece ver os seus descontos serem bem gastos, quem não tem cabeça e precisa de ser ajudado então tem de ser mandado por quem saiba. Não a subsídio dependente e ajudar os povos ao desenvolvimento equitativo do mundo.

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