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Os media também são um palco das novas Guerras Frias — e os EUA já destinaram 500 milhões para a propaganda anti-China

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Liu Jie/xinhua Mandatory / EPA

Primeira reunião entre administração Biden e China

Em competição económica e tecnológica com a China, os Estados Unidos estão a ampliar os investimentos em meios de comunicação que façam uma cobertura mediática negativa de iniciativas chinesas como a Nova Rota da Seda.

A Câmara dos Representantes aprovou recentemente o America COMPETES Act, um lei que pretende estimular a produção industrial e tecnológica nos Estados Unidos.

Mas para além dos apoios de milhares de milhões de dólares destinados a estimular a investigação de semicondutores e de outro ramos científicos, a lei deixa ainda bem claro um outro objectivo — esmagar a competição chinesa.

Para isso, os EUA vão destinar 500 milhões de dólares para incentivar a cobertura mediática negativa da China. A Presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, referiu no discurso após a aprovação que objectivo é “responsabilizar” a China pelos seus abusos comerciais que “prejudicam os trabalhadores norte-americanos”.

“As pessoas têm de entender a ligação entre as violações dos direitos humanos a justiça para com os trabalhadores americanos. O que se passa na China com os uyghurs vai além dos direitos humanos, é um genocídio. Este uso de trabalho forçado é imoral e horrível e prejudica os trabalhadores americanos que têm de competir com trabalho escravo”, declarou Pelosi.

A versão desta legislação que foi agora aprovada na Câmara dos Representantes segue nos passos da lei USICA, que também procura aumentar a competitividade americana no sector tecnológico perante a concorrência chinesa, que passou no Senado em Junho do ano passado.

O plano será criar um comité conjunto entre o Senado e a Câmara dos Representantes para a fusão das duas leis nas próximas semanas, apesar de já se anteciparem algumas dificuldades porque os Republicanos não aprovam algumas das medidas incluídas no pacote destinadas ao combate às alterações climáticas, à imigração e às leis laborais.

Mais consensuais parecem ser as secções chamadas “apoio aos media independentes e combate à desinformação” presentes nos dois documentos, nota o The American Prospect.

As duas propostas de lei estipulam que a cobertura mediática financiada pelo Estado deve ser “independente”, mas impõem alguns requerimentos que podem pôr essa independência em questão.

Por exemplo, a lei do Senado encoraja a cobertura negativa dos investimentos chineses em países em desenvolvimento e do projecto da Nova Rota da Seda e quer ainda produzir conteúdos anti-China especialmente nas regiões onde o Partido Comunista Chinês está a promover “mercados mediáticos manipulados”.

A Nova Rota da Seda é um projecto chinês de financiamento de obras e renovação das infraestruturas de vários países em desenvolvimento, que pretende estreitar os laços económicos e comerciais entre os Estados e já foi comparado ao Plano Marshall que os Estados Unidos adoptaram para apoiar a reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial.

Os EUA têm sido grandes opositores do projecto e uma das medidas aprovadas na USICA prevê a criação de um “Fundo Contra a Influência Chinesa” que receberá mais de 1.5 mil milhões de dólares ao longo de cinco anos. Mais de um terço deste dinheiro tem como destino os meios de comunicação.

O passado polémico da USAGM

As preocupações com a isenção desta cobertura mediática são ainda mais acentuadas porque a maior parte do financiamento desta lei vai para a Agência para os Media Global (USAGM), que tem um passado controverso.

A USAGM é uma agência com financiamento federal que é responsável por órgãos como o Voice of America, Radio Free Europe, Radio Free Asia (RFA), e o Office of Cuba Broadcasting (OCB) e já foi várias vezes acusada de fazer propaganda partidária e em nome dos interesses norte-americanos.

Os órgãos da agência trabalham para fazer chegar uma perspectiva pró-Ocidente à população de países inimigos de Washington, como a China, Cuba ou a Rússia.

O uso da cobertura mediática da agência como arma política não é de agora — e há quem acredite que ainda não é suficiente e que os EUA vivem uma crise no “soft power” mediático que consideram fundamental para a imagem externa do país.

Em 2020, Robert Gates, antigo Secretário da Defesa, sugeriu que os Estados Unidos fizessem uma “revisão da sua mensagem pública” com uma nova “organização de topo nível que faça uma comunicação consistente e estratégia usando todos os meios disponíveis”.

“Ao contrário da China e da Rússia, os Estados Unidos agora não têm uma estratégica efetiva na comunicação da sua mensagem e no combate aos seus competidores”, alertou Gates, citado pela Foreign Affairs.

Na década de 70, depois de ser conhecido que a Radio Free Europe e a Radio Liberty eram financiadas pela CIA, o Senador J. William Fulbright, que era um crítico fervoroso da política externa norte-americana, argumentou que as rádios deviam ficar de fora da propaganda da Guerra Fria.

Fullbright foi também o principal promotor de uma reforma que restringiu a distribuição de materiais de propaganda no exterior a cidadãos americanos. Esta lei foi depois alargada pelo Representante Edward Zorinsky, que considerou que os Estados Unidos se distinguem da União Soviética por serem uma “sociedade livre” que não utiliza a propaganda domesticamente.

Mas esta reforma foi revertida em 2012, com um porta-voz da USAGM a afirmar que o fim da proibição da disseminação de propaganda a públicos internos ajudaria a agência a chegar aos grupos de imigrantes que vivem nos Estados Unidos, como os imgrantes somalis que se mudaram para o Minnesota.

A instrumentalização mediática interna

A administração de Donald Trump, que era notoriamente crítica dos media, procurou fazer uma reforma na USAGM para usar a agência a seu favor, tanto no planointerno como externo.

Em 2018, por exemplo, o OCB esteve envolvido numa polémica depois de emitir um segmento onde descrevia o milionário George Soros — que financia grupos de activistas e órgãos de comunicação progressistas através da Open Society Foundations e é um nome frequentemente referido em teorias da conspiração — como um “judeu não crente com morais flexíveis“.

Trump nomeou também Stephen J. Yates, antigo conselheiro de Dick Cheney que já tinha feito lobbying em nome do Governo de Taiwan, para ser o Presidente da Radio Free Asia — uma escolha que foi criticada pelos jornalistas que acreditam que esta manchava a credibilidade do órgão.

Os trabalhadores do Voice of America escreveram uma carta onde revelaram que foram ordenados a cobrir um discurso do então Secretário de Estado, Mike Pompeo, e acusaram o Governo de os querer obrigar a dar palco a um “evento de propaganda”.

A nomeação do cineasta conservador Michael Pack, um aliado de Steve Bannon, para a chefia da USAGM foi também controversa. Os Democratas no Senado recusaram nomear Pack durante anos, mas em 2020 os Republicanos usaram a maioria para forçar a promoção do realizador.

Em pouco tempo, Pack despediu o líder de um grupo tecnológico e substituiu os painéis bipartidários que aconselhavam os cinco órgãos que a agência gere.

Estas decisões, naturalmente, suscitaram muita contestação entre os Democratas, que acusaram Trump de querer usar uma agência federal para fazer propaganda partidária. A frustração no partido era tanta que meras horas após ser inaugurado como Presidente, Joe Biden demitiu Michael Pack.

Mas se a mensagem dos media sobre a política interna dos EUA pode variar dependendo de qual o partido que está no poder, quando o assunto é a política externa, os métodos de instrumentalização e as mensagens que se pretendem passar tendem a reunir o apoio dos dois partidos.

Tão recentemente como em Dezembro do ano passado, perante a escalada da tensão com a Rússia, o Voice of America apontou a sua primeira editora chefe na Europa de Leste e prometeu expandir a cobertura da região, citando a “postura agressiva do Kremlin” e o “impacto da influência da Rússia e da China” como razões que motivaram a aposta.

Com a subida da tensão entre os EUA e a China e a Rússia a não dar sinais de abrandar — seja com a ameaça de invasão à Ucrânia ou com os conflitos diplomáticos que vieram à tona nos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim — a guerra na propaganda também não dá sinais de abrandar.

Adriana Peixoto, ZAP //

1 Comment

  1. Se não tivessem vendido parte dos EUA aos chineses, os americanos talvez não necessitassem destas campanhas de “marketing”!…
    O árabes vão pelo mesmo caminho…

    Os chinos também gastam milhões em propaganda pró-China nos media acidentais!!

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