Guerra dos superjuízes: Ivo Rosa contra Carlos Alexandre

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Manuel de Almeida / Lusa

O juiz Ivo Rosa

Carlos Alexandre e Ivo Rosa aproveitaram férias um do outro para anular e reverter decisões. CSM está a “acompanhar” a escalada do conflito.

A última frase do acórdão da Relação de Lisboa que pôs fim a mais uma batalha judicial entre Carlos Alexandre e Ivo Rosa é uma espécie de grito de alerta dirigido ao órgão de disciplina dos juízes, segundo o Expresso.

“Entendo que deve ser dado conhecimento ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) das vicissitudes dos autos, conforme resultam descritos no presente acórdão”.

Esta declaração de voto do desembargador Abrunhosa Carvalho (que nem é o relator do acórdão) obriga agora o CSM a pronunciar-se sobre o choque indisfarçável entre estas duas personalidades jurídicas, que já teve consequências práticas.

A reformulação do Tribunal Central de Instrução Criminal deixou de ter apenas estes dois juízes e passou a ter nove, para evitar a “personalização” do ‘Ticão’, como é conhecido no meio judicial.

Com isto pretendeu-se combater a ideia, já interiorizada, de que o sentido de uma qualquer decisão ou recurso dependia de quem o sorteio designava para o apreciar, Ivo Rosa ou Carlos Alexandre.

As “vicissitudes” relatadas no acórdão da Relação de Lisboa começaram em abril de 2021, com um despacho de Ivo Rosa que não encaixa no perfil deste juiz, normalmente pouco favorável às posições do Ministério Público (MP) e mais garantista dos direitos dos arguidos.

A Odkas, uma empresa sediada na Madeira e detida em 49% pela mulher de Mário Leite da Silva — principal gestor dos negócios da empresária angolana Isabel dos Santos —, recebera 11,5 milhões da Sonangol por serviços de consultoria informática que as autoridades suspeitaram serem fictícios ou altamente inflacionados.

Ivo Rosa decidiu assim: “As quantias monetárias depositadas nas contas abaixo identificadas têm origem criminosa, nomeadamente crimes cometidos em Angola contra o Estado angolano, e as operações de depósito e transferência destinam-se apenas a conferir licitude à origem suja do dinheiro“.

E justificou desta forma a “apreensão dos saldos bancários” da Odkas. o que significava que só poderia entrar dinheiro nas contas e nem um cêntimo podia sair.

Só que, três meses depois, a 14 de julho de 2021, e após ouvir as testemunhas arroladas pela Odkas, o mesmo Ivo Rosa ordenou o “imediato levantamento da apreensão dos saldos bancá­rios” — e foi de férias.

“Surpreen­dido”, o MP, que solicitara a apreensão das contas, recorreu da decisão do juiz e declarou o caráter urgente do processo, para evitar que os fundos desaparecessem das contas enquanto os tribunais decidiam se se mantinham congeladas.

A reclamação foi posteriormente apreciada, a 19 de julho, por Carlos Alexandre, que era o juiz de turno.

Decidiu “dar sem efeito os ofícios” de Ivo Rosa e mandou comunicar aos bancos que os saldos das contas da Odkas se mantinham apreen­didos.

Além disso, em agosto, Alexandre executou ainda vários despachos no processo — até que também ele entrou de férias e acabou substituído por Ivo Rosa.

Este apreciou um requerimento da Odkas a pedir a “nulidade” do despacho de Carlos Alexandre e declarou a “invalidade de todos os atos processuais praticados em férias pelos juízes de turno”.

E ordenou, outra vez, “o imediato levantamento da apreensão dos saldos bancários da Odkas”. Uma segunda reviravolta no assunto, que não ficaria por aqui, pois o MP recorreu para o Tribunal da Relação, que, apesar de elogiar a “argumentação” clara e o “acerto jurídico” de Ivo Rosa, manteve a apreensão das contas enquanto outro recurso sobre a captação propriamente dita não fosse decidido.

Ou seja, a decisão de Ivo Rosa foi rejeitada por Carlos Alexandre e a seguir reposta por Ivo Rosa, que viu o MP recorrer desta sua última ação. Um jogo de forças.

Os sucessivos despachos e anulações não foram analisados pela Relação com unanimidade. Calheiros da Gama, o relator do acórdão, a este propósito não faz menção a isso, mas Abrunhosa Carvalho fez a sua declaração de voto, sinal de desconforto.

Uma fonte judicial, que não quer ser identificada, explica que o desembargador terá entendido a troca de anulações e despachos entre os juízes desprestigiante para a Justiça e por isso ter de ser averiguada.

O CSM diz que está a “acompanhar a situação” no “âmbito das suas competências”, mas não revela se vai instaurar imediatamente um inquérito formal na sequência da declaração de voto de Abrunhosa Carvalho.

Se este desembargador tivesse feito uma participação formal, o CSM seria obrigado a abrir já um inquérito disciplinar.

O próximo assalto

No próximo dia 11 de março, o juiz Carlos Alexandre vai ocupar um lugar diferente na sala de audiências do Tribunal da Relação de Lisboa.

Desta vez — pela primeira vez — é arguido num processo-crime e está indiciado pelos crimes de abuso de poder, denegação de justiça e falsificação de funcionário.

Tudo devido ao despacho instrutório do colega Ivo Rosa — a quem se refere sempre como Ivo Nelson Caires Rosa, o nome completo — na Operação Marquês.

Para além de ter reduzido a acusação a cacos, Ivo Rosa negou a versão tanto do MP como do CSM de que a distribuição manual que levou Carlos Alexandre a ficar com o processo foi legal e regular.

Ivo Rosa mandou extrair uma certidão para o MP por considerar estar em causa o princípio do juiz natural, uma vez que Carlos Alexandre tinha sido escolhido para o processo por uma pessoa “não legitimada” para o fazer.

Essa pessoa era Teresa Santos, a escrivã do ‘Ticão’, que anunciou em direto a prisão preventiva de José Sócrates e que, entretanto, se desentendeu com Carlos Alexandre — a quem acompanhava desde os tempos do Tribunal Militar — e acabou colocada no Tribunal de Execução de Penas.

Ivo Rosa explicou que, ao contrário do que foi alegado, não houve qualquer “anomalia informática” que impedisse o sorteio eletrónico na distri­buição da Operação Marquês e sugeriu que havia indícios de crime.

Mas o MP, apesar de ter admitido “irregularidades”, arquivou o processo, alegando não haver indícios de que Teresa Santos tenha “recebido ordens” ou que o tenha feito “propositadamente”.

José Sócrates, que se constituíra assistente no processo da distribuição da Operação Marquês, com aprovação de Ivo Rosa, não se conformou.

Fez um requerimento de abertura de instrução e conseguiu que um juiz da Relação de Lisboa — Jorge Antunes — aceitasse avaliar se o arguido Carlos Alexandre cometeu ou não um crime.

ZAP //

4 Comments

  1. A presunção de inocência até prova em contrário deveria estar presente em todos os oficiais de justiça, incluindo o MP.
    Infelizmente em casos mediáticos o MP corre a acusar e espera que os juizes autorizem os congelamento e prisão preventivas enquanto depois conduzem as investigações.

    Alguns juízes aceitam isso para cair bem na opinião pública.
    Se queremos uma justiça melhor, temos de aumentar a responsabilidade destes agentes e as indemnizações a quem é lesado.
    É ridículo por exemplo aprender contas de uma empresa por mais de um ano para investigar, para ao final de esse ano se não conseguir provar fraudes (porque às vezes não existem) e nada acontece. A empresa faliu ou ficou cheia de dívidas, despediu trabalhadores porque deixou de ter condições de pagar e recebe uma desculpa do tribunal e pouco mais de indemnização.
    Ou mesmo gajos que ficam presos preventivamente por um ano e depois conseguem provar inocência, o ridículo é que muitas vezes o MP não tem de provar culpa, acusa e espera que arguido consiga provar inocência (o ridículo da situação), a presunção de inocência em casos de mediáticos vira presunção de culpa porque o gajo tem dinheiro logo deve e tem de ser culpado.

    Se as indemnizações fossem a doer quando isto acontece, seria um abre olhos.
    Os juizes e MP seriam responsabilizados e o povo português veria os seus impostos a criar milionários. Talvez aí entendessem a importância de não acusar sem provas e o MP aprendesse a investigar.

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