O “arquiteto de Deus” vai ser santo? Gaudí tornou-se venerável com milagres à vista de todos

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Antoni Gaudí, fotografado por Pau Audouard.

O Papa Francisco deu o primeiro passo para a beatificação de Antoni Gaudí, que é agora um “Venerável Servo de Deus”. Os católicos vão rezar ao arquiteto catalão?

A Sagrada Família é obra de um santo?

Ainda não, mas poderá ser, em breve. Às portas do 100.º aniversário da sua morte, Antoni Gaudí e as suas “virtudes heroicas” já são reconhecidas pelo Papa Francisco como “veneráveis”, depois de o máximo pontífice ter aberto o caminho para a beatificação do espanhol, esta segunda-feira, pelo trabalho do famoso arquiteto catalão na construção da Basílica da Sagrada Família, em Barcelona.

O decreto do Dicastério para a Causa dos Santos que torna o “arquiteto de Deus” venerável foi promulgado esta segunda-feira. Gaudí é agora um “Venerável Servo de Deus” aos olhos da Igreja Católica: um título visto como um primeiro passo no caminho para o tornar beato e, mais tarde, santo.

Já em 1962 se dizia que ele era um santo. “Cada ano que passa estou mais convencida disso”, afirmou na altura a freira que costumava cuidar da limpeza de sua casa: “acredito que ele merece ser canonizado”.

E o processo para a beatificação de Gaudí já começou há 30 anos, nas mãos da Associação Canónica, mas só em 2000 é que a Santa Sé autorizou a abertura formal do processo diocesano daquele que é descrito pela associação como “uma testemunha de fé, um homem de fé, um grande observador da natureza e um arquiteto brilhante e figura universal na arquitetura moderna”, e cujo “testemunho de fé que ofereceu durante a sua vida está registado na sua obra mais importante, a Sagrada Família”.

Foi o Papa Bento XVI o primeiro a consagrar a Basílica que está em constante construção, em 2010. Gaudí “superou a divisão atual entre a consciência humana e a consciência cristã, entre a existência neste mundo temporal e a abertura à vida eterna, entre a beleza das coisas e Deus como Beleza”, disse o ex-sumo pontífice sobre o arquiteto.

Para que Gaudí seja beatificado, é necessário o reconhecimento de um milagre atribuído à sua intercessão. Haverão já dois há espera de reconhecimento do Vaticano. Um possível milagre que pode, por si só, fazer de Gaudí beato, envolve uma mulher de Reus que garante ter recuperado a visão graças à sua devoção a Gaudí. O outro eventual milagre não se conhece, mas a sua validação é condição necessária para Gaudí vir a ser santo.

Por cá, a Ordem dos Arquitetos mostra-se surpreendida com a possível beatificação de Gaudí, “um homem muito envolvido com a sua arte e o seu trabalho e menos envolvido com a dimensão religiosa”, diz Avelino Oliveira, presidente da Ordem, à TSF : a “magnificência da obra” de um artista é suficiente para “provocar a beatificação”?

A verdade é que o arquiteto tem “milagres” confirmados, eternizados nas ruas catalãs. Afinal, Antoni Gaudí serviu Deus como diz a Igreja Católica?

De “anticlerical” à missão que “Deus lhe deu”

Morreu há quase 100 anos, em 1926, com 73 anos, três dias depois de ter sido atropelado por um elétrico na cidade que reinventou com projetos modernistas históricos, como as casas Vicens, Batlló e Millá, o Parque e Palácio Guell — hoje um modelo de parque urbano e cidade-jardim — ou por exemplo a Finca Miralles, hoje visitados e apreciados por pessoas de todo o mundo.

Aquele homem que é descrito como profundamente religioso, batizado com um dia de idade, foi atropelado com vestimenta de pobre, o que terá impedido inicialmente o seu reconhecimento — humildade que será certamente do agrado de Papa Francisco.

Seria sepultado n’A sua Sagrada Família, depois de anos a ir diariamente à missa e a passar horas em oração na fase mais tardia da vida, mas não antes de se ter tornado temporariamente “indiferente à religião” e “anticlerical e agressivo”, no contexto social catalão que conhecemos, recorda o arquiteto e antigo presidente da Associação para a Beatificação de Antoni Gaudí, José Manuel Almuzara ao Pilar.

Tudo isso terá mudado precisamente quando o projeto d’A Sagrada Família foi parar às suas mãos, a partir de 1883, quando o criador tinha apenas 31 primaveras. Gaudí ter-se-á tornado mais humilde à medida que ia trabalhando na obra, despido o luxo e deixado de comer carne. Até terá feito um jejum quaresmal de 40 dias em 1894.

Em 1914, deixou todos os outros projetos para se dedicar exclusivamente à missão que “Deus lhe deu”, como lhe disse repetidamente o bispo de Barcelona: construir A Sagrada Família.

Gaudí serviu Deus?

Diz-se que o catalão acreditava que o seu talento era um dom de Deus e que deveria usá-lo ao serviço do mesmo. De facto, os vitrais da sua magnum opus — que, apesar de inacabada, hoje lhe abre caminho para a beatificação — refletem a “beleza da criação divina”, a começar pelo próprio edifício: uma “Bíblia em pedra” com milhares de símbolos religiosos, como explicam os guias turísticos diariamente aos mais de 4,8 milhões de visitantes em 2024 — uma média de 13 mil visitantes por dia, um aumento de 2,7% face a 2023.

Hoje, “há mais velas do que nunca no túmulo de Gaudí”, que está deitado na cripta da Basílica que já começa a ser encarada como um local de peregrinação, confessa o reitor da Basílica da Sagrada Família, Mosén Josep Maria Turull, em recente entrevista ao El Periódico.

Além da atmosfera espiritual que o vidro colorido pela luz traz a quem visita, os restantes simbolismos religiosos são incontornáveis. As 18 torres do popular edifício representam os 12 Apóstolos, a Virgem Maria, os 4 Evangelistas e Jesus Cristo; as três fachadas são dedicadas a três acontecimentos importantes da vida de Cristo (a Fachada da Natividade, a única que Gaudí viu ser terminada, representa o seu nascimento, a Fachada da Paixão a sua crucificação e a Fachada da Glória a sua ressurreição e ascensão) e as colunas arvorísticas no interior da Basílica simbolizam a criação de Deus na Natureza.

Saíndo da Basílica, na inacabada Igreja de Guell, possível precursora das técnicas usadas na Sagrada Família, é possível ver decoração cristã na cripta e no parque, que tem o mesmo nome de um dos maiores clientes de Gaudí, há uma cruz monumental no ponto mais alto e desenhos inspirados na ordem natural e divina; na Casa Battló, a cruz no telhado chama logo à atenção. Acredita-se que a cruz de quatro braços representa o cabo da espada de São Jorge, o santo padroeiro da Catalunha, que usou a arma para matar um dragão — uma interpretação reforçada pelo desenho do mesmo telhado, que se assemelha ao dorso de um dragão.

Tal como a maioria dos seus projetos, a Basílica nasceu e continua a ser financiada por investidores privados, atraídos pelo charme inovador e criativo do jovem arquiteto, quase revolucionário na sua ousada fusão da arte com a arquitetura. Hoje, a obra está em constante construção às mãos de admiradores seus, que se baseiam alegadamente nos desenhos do “arquiteto de Deus”.

Os milagres da Natureza

“Entre vasos de flores, rodeado por vinhas e oliveiras, animado pelo cacarejar das galinhas, o chilrear dos pássaros e o zumbido dos insetos, olhando para as montanhas de Prades, desfrutei das imagens mais puras e deliciosas da Natureza – a Natureza, que sempre foi a minha professora (…) devido à minha saúde precária, muitas vezes tive de me abster de brincar com os meus colegas, o que fomentou o meu espírito de observação”, terá dito Gaudí, segundo o seu biógrafo, Isidre Puig Boada. Quase que nos faz questionar onde e como é que o arquiteto via Deus.

Foi a olhar para a natureza que Gaudí a transformou. Pioneiro do trencadís (mosaico feito de azulejos e vidro partidos), “vidente” do design computadorizado (criou modelos de correntes suspensas com pesos para testar formas acionadas pela gravidade), atento ao pormenor e fluído no seu estilo único, inovador até na ventilação e iluminação natural, com projetos não só atraentes ao olhar, mas funcionais.

Não foi ele o responsável pelo traçado urbano de Barcelona (esse crédito pertence principalmente a Ildefons Cerdà e ao seu hiperracional plano Eixample, de 1859), mas foi ele quem deu uma identidade visual única à cidade de Barcelona, onde o urbanismo deixou de ser linear para ser orgânico, cruzando a funcionalidade com a estética e ornamentação numa “obra de arte total” (Gesamtkunstwerk, um conceito que trouxe para Espanha, e que era agora possível). Porque as cidades podem ser bonitas e funcionais ao mesmo tempo, dos edifícios aos candeeiros:

Os candeeiros da Plaça Reial desenhados por Gaudí

Resta agora saber o que será concluído primeiro: se a Sagrada Basílica, se a santidade do seu criador. Mas como dizia Gaudí, “o cliente pode esperar”.

Tomás Guimarães, ZAP //

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