A França quer punir o assédio nas ruas com multas até 750 euros. O projecto de lei ainda não está finalizado, mas já provoca controvérsia, com associações feministas, e até mesmo a polícia, a revelarem-se cépticas em relação à sua aplicação.
O assédio nas ruas é baptizado como “ultraje sexista e sexual” no texto do projecto de lei que deve ser apresentado em Conselho de Ministros, no final deste mês de Março. A sua definição, porém, “é algo muito complicado” e subjectivo, reconhece a ministra da Igualdade entre Mulheres e Homens, Marlène Schiappa, cita a BBC.
Afinal, qual é o limite entre o simples “flirt” e o assédio no espaço público? Um grupo de parlamentares, que ouviu associações e especialistas, entregou ao governo, na semana passada, um estudo sobre esta questão.
Sem enumerar em detalhe os actos considerados como “ultrajes sexistas e sexuais”, a futura lei irá punir “comentários e comportamentos que afectam a dignidade da pessoa”, em razão do carácter “degradante ou humilhante”, ou que criem situações “intimidantes, hostis ou ofensivas”.
Na prática, são palavras e gestos obscenos ou sugestivos, olhares insistentes, o facto de se seguir alguém pelas ruas ou no metro, e até mesmo assobios, exemplifica a ministra. A multa será de 90 euros se o pagamento for feito imediatamente. O valor de 750 euros será cobrado se houver factores agravantes.
Flagrante da polícia
O problema é que, para a multa ser aplicada, é preciso que haja um flagrante da polícia. O governo francês optou por este sistema para evitar a necessidade de a vítima prestar queixa na esquadra, como ocorre na Bélgica, onde a medida para punir o assédio na rua não teve resultados.
Em Portugal, também foram, recentemente, criminalizados o piropos, mas é preciso que os visados ou visadas apresentem queixa.
“Já é difícil as mulheres prestarem queixa por violação. No caso do assédio na rua, mesmo eu, como mulher, não perderia tempo com uma queixa contra alguém que não vai ser localizado”, refere Schiappa, ressaltando que para que a lei funcione “é preciso que haja multas em flagrante delito“.
O ministro do Interior, Gérard Collomb, assegura que isso será cumprido pela nova “polícia de segurança do quotidiano”, lançada em Fevereiro e que terá 10 mil agentes até 2022.
As forças de segurança, no entanto, não se mostram tão confiantes em relação à futura lei. “Quem assedia não é inconsciente a ponto de insultar uma mulher na frente de um polícia”, nota Patrice Ribeiro, do sindicato policial Synergie-Officiers, citado pela BBC.
Algumas associações, como a Ouse o Feminismo, temem que actos de agressão ou de assédio sexual percam a qualificação jurídica de delito e que sejam punidos de maneira mais branda, com simples multas.
“Há grandes incertezas em relação à aplicação desta lei e aos meios que serão utilizados para isso. Para dar segurança às mulheres, é preciso fazer bem mais do que uma inovação legislativa”, sustenta Raphaëlle Rémy-Leleu, porta-voz do grupo, em declarações divulgadas pela BBC.
Segundo a activista, já existe um arsenal jurídico em França, em relação ao assédio sexista e sexual, inclusive no trabalho. Na grande maioria dos casos, diz ela, os agressores ficam impunes devido à dificuldade das vítimas para provar os factos.
“Mesmo nos casos de assédio pela Internet, onde dispomos de provas escritas, não conseguimos prestar queixa nem fazer com que os agressores sejam punidos”, afirma.
Num manifesto contra a penalização do assédio na rua, um grupo de professores universitários e de investigadores franceses afirma que a lei visaria homens desfavorecidos, que passam mais tempo na rua, e também não ocidentais, indicando que poderia haver racismo.
Para a ministra da Igualdade entre Mulheres e Homens, quando alguém for multado por ultraje sexista ou sexual, isso servirá de exemplo e terá um valor “pedagógico”.
“Isto faz parte do combate cultural que estamos a fazer e deve levar as pessoas a interrogarem-se sobre seus comportamentos e a redefinirem os limites de tolerância da sociedade”, afirma Schiappa.
A ministra refere que o projecto de lei deverá ser votado pelo Parlamento até Junho.
Além do assédio na rua, ele prevê medidas como a ampliação do prazo de prescrição de crimes de violação sofridos por menores, e a fixação de uma idade mínima para que uma relação sexual possa ser considerada consentida.
Caso Weinstein
Em França, campanhas como #balancetonporc (algo como “denuncia o teu porco”) levaram a um aumento de 31% nas queixas de crimes sexuais, no último trimestre de 2017.
Várias personalidades, inclusive um ministro, são actualmente investigados por supostas violações no país.
O presidente francês, Emmanuel Macron, tinha prometido na campanha eleitoral que a igualdade de género seria uma das grandes causas do seu mandato.
Tal como ocorreu noutras partes do mundo, o tema também ganhou mais destaque em França após o escândalo que envolve o produtor norte-americano Harvey Weinstein, acusado de dezenas de agressões sexuais.
As consultas ao texto que visa punir o assédio na rua foram lançadas pelo governo antes da polémica causada pelo manifesto assinado por 100 artistas, intelectuais e académicas francesas – entre elas a actriz Catherine Deneuve -, a defender “a liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual”.
Na carta, elas denunciavam o que chamam de novo “puritanismo” que teria surgido no mundo, após o caso Weinstein.
“Violação é crime, mas tentar seduzir alguém, mesmo de forma insistente ou desajeitada, não é – tampouco o cavalheirismo é uma agressão machista”, defendiam.
ZAP // BBC