“Quase me esqueci de como relaxar”. Epidemia de insónias varre a Coreia do Sul

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Khalid Belhaji / Flickr

A cultura obcecada com o trabalho causa tanto stress na Coreia do Sul que grande parte da população sofre de insónias e recorre à medicação para conseguir dormir.

Ji-Eun começou a ter dificuldades para dormir quando a sua jornada de trabalho se tornou tão cansativa que simplesmente não conseguia relaxar.

Em média, trabalhava das 7h às 22h. Mas a jovem de 29 anos, que trabalha com relações públicas, às vezes ficava até 3h da manhã no escritório. O seu chefe chegava até a ligar no meio da noite a pedir que uma tarefa fosse feita na hora.

“Eu quase me esqueci de como relaxar”, explica. E não é um caso isolado. A Coreia do Sul é um dos países com os maiores índices de privação de sono do mundo, com enormes efeitos sobre sua população.

Na Clínica Dream Sleep, no bairro Gangnam, em Seul, Ji-hyeon Lee, psiquiatra especializada no sono, diz que é comum receber pacientes que tomam até 20 comprimidos para dormir diariamente.

“Geralmente leva um tempo para ficarmos com sono, mas os coreanos querem dormir rapidamente, então tomam medicamentos“, conta. O vício em comprimidos para dormir tornou-se uma epidemia nacional. Não há estatísticas oficiais, mas estima-se que o vício atinja 100 mil coreanos.

Sem conseguir dormir, muitos misturam álcool com a medicação – com consequências potencialmente perigosas.

As pessoas tornam-se sonâmbulas. Vão até ao frigorífico, comem coisas de modo inconsciente, até comida crua”, diz Lee. “Houve casos de acidentes de carro em Seul causados por pacientes sonâmbulos.”

Lee está acostumada a receber pessoas com insónias crónicas que sofrem do que é conhecido como hiperexcitação (condição que activa o cérebro e nos impede de dormir bem). Alguns dos seus pacientes dizem que não dormem mais do que algumas horas por noite há décadas.

“Eles choram, mas ainda têm um fio de esperança (quando vêm à consulta). É uma situação muito triste”, diz a psicóloga.

Excesso de trabalho, stress e privação do sono

A Coreia do Sul é uma das nações com mais privação do sono do mundo. Também tem a maior taxa de suicídio entre os países desenvolvidos, o maior consumo de bebidas destiladas per capita e um grande número de pessoas a tomar antidepressivos.

Existem razões históricas que explicam essas estatísticas. Em apenas algumas décadas, o país passou de um dos mais pobres do mundo para um dos mais tecnologicamente avançados.

Além disso, por meio da sua crescente influência na cultura pop, exerce considerável “soft power” (termo usado nas relações internacionais para descrever a capacidade de influenciar ações ou interesses por meios culturais e ideológicos).

Nações com um histórico semelhante, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, podem explorar os seus recursos naturais, mas a Coreia não tem essa riqueza oculta. O país transformou-se pela pura dedicação de uma população movida por um nacionalismo coletivo que os impelia a trabalhar mais e mais rápido.

O resultado é que os sul-coreanos estão sobrecarregados, stressados e privados de sono. Agora, toda uma indústria se formou em torno das pessoas incapazes de dormir – e, em 2019, a indústria tinha um valor estimado em 2,5 mil milhões de dólares.

Indústria em crescimento

Na capital Seul, as lojas de departamento são dedicadas a produtos para dormir, desde os lençóis perfeitos até à almofada ideal, enquanto que as farmácias oferecem prateleiras cheias de medicamentos herbais.

E há abordagens tecnológicas contra as insónias. Há cerca de dois anos, Daniel Tudor lançou uma aplicação de meditação – Kokkiri – focada em ajudar os jovens coreanos stressados a dormir.

Embora a Coreia do Sul seja historicamente um país budista, os jovens pensam que a meditação é um passatempo para os mais velhos, não algo que um funcionário de escritório em Seul possa fazer. Daniel diz que teve que reimportar e reembalar a meditação como uma ideia ocidental para que os jovens coreanos a achassem atraente. As instituições mais tradicionais também estão a entrar em ação.

Hyerang Sunim é um monge budista que ajuda a organizar retiros num templo fora de Seul, onde pessoas com privação de sono podem meditar e absorver os ensinamentos budistas.

No passado, esses tipos de mini-pausas eram reservados para aposentados que buscavam ensinamentos e oração. Agora, os participantes tendem a ser coreanos mais jovens em idade de trabalhar. Mas esses mesmos templos budistas também foram criticados por lucrarem com estes tipos de retiros.

“É claro que há preocupações. Mas acho que os benefícios as superam”, argumenta Hyerang Sunim. “Tradicionalmente, era raro ver jovens virem procurar os ensinamentos budistas. E eles têm agora muita interação com o templo.”

Mudanças fundamentais

Lee Hye-ri, que participou num destes retiros budistas quando a pressão no trabalho se tornou intolerável, diz que aprendeu a assumir a responsabilidade pelo seu stress.

Tudo começa comigo; todos os meus problemas começam em mim. Foi o que aprendi aqui”, explica a jovem. Mas enquadrar a solução para o stress e a privação de sono como algo a ser tratado a nível individual pode ser problemático.

Aqueles que acreditam que o problema é causado por uma cultura de trabalho irracional e pressões sociais criticaram esta abordagem individualista, dizendo que isso equivale a culpar as vítimas.

Esses críticos dizem que a meditação ou o relaxamento são uma colcha de remendos e que soluções reais só podem surgir com mudanças fundamentais na sociedade. Ji-Eun acabou tão privada de sono e stressada que decidiu deixar o emprego.

Agora, trabalha horas muito mais razoáveis como freelancer e, devido à pandemia, pode trabalhar em casa. Também procurou ajuda profissional na clínica do sono de Lee para controlar as suas insónias.

“Qual é o sentido de trabalhar tanto agora que chegamos ao topo como país?” diz Ji-Eun. “Devemos ser capazes de relaxar.”

ZAP // BBC

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