A nova lei para a nacionalidade e fronteiras do Reino Unido pode exacerbar ainda mais as detenções sem que sejam identificados os casos em que os migrantes possam ser vítimas de tráfico humano.
Nos últimos cinco anos, mais de 4500 pessoas que foram retidas em campos de migração no Reino Unido só foram identificadas como potenciais vítimas de tráfico depois de serem libertadas.
Os dados mostram que entre 2016 e 2020, 4565 pessoas foram identificadas como potenciais vítimas de tráfico humano dentro do Mecanismo de Referência Nacional (NRM) depois de abandonarem os centros de detenção onde geralmente são colocadas pessoas que devem ser retiradas do Reino Unido. No primeiro trimestre deste ano, o número foi 68.
As organizações de caridade no país referem que os números mostram uma atitude de “deter primeiro, fazer perguntas depois” que não é útil na luta contra a escravatura moderna e sugerem que podem haver ainda mais pessoas a ser deportadas sem terem poderem ser apoiadas primeiro, escreve o The Guardian.
A directora da organização After Exploitation, Maya Esslemont, que teve acesso aos dados que foram publicados para coincidirem com a semana anti-escravatura, revela ao jornal britânico que é “horrorizante” ver as provas de “quão frequentemente os sobreviventes são castigados em vez de apoiados” enquanto o “governo investe recursos consideráveis para tornar o processo de decisão sobre tráfico ainda mais restrito”.
“Nos milhares de casos, vimos que algumas das pessoas mais vulneráveis no Reino Unido enfrentam condições que não são propícias a que revelem que sofreram abusos. Além do imperativo moral para tornar o apoio a vítimas de tráfico disponível mais prontamente àqueles que precisam, é claro que a abordagem “deter primeiro, perguntar depois” à detenção completamente obscura a capacidade do estado de identificar tráfico humano e vai contra o seu objectivo de lutar contra a escravatura moderna”, afirma.
Já a advogada especializada em imigração e pedidos de asilo, Emma Harris, acredita que estes dados são uma indicação forte de que é provável que haja vítimas de tráfico que tenham sido deportadas do Reino Unido sem “nunca serem referidas ao NRM” para o apoio a que têm direito. Harris sublinha que nove em cada 10 decisões do NRM em 2010 concluíram que a pessoa tinha sido vítima de escravatura ou tráfico.
Nova lei pode dificultar o processo de identificação
As autoridades britânicas têm o dever legal de identificar potenciais vítimas e de lhes dar a oportunidade de entrar no NRM. Sem este apoio, os sobreviventes não têm acesso a apoios legais ou a habitação.
A nova lei da nacionalidade e fronteiras pode aumentar a probabilidade de haver detenções, segundo admite o próprio governo, e essa possibilidade está a preocupar as organizações de caridade.
Nos últimos anos, milhares de migrantes têm tentado chegar ao Reino Unido de barco, partindo de França. De acordo com dados oficiais, cerca de 8461 pessoas foram apanhadas a tentar entrar no país em pequenos barcos em 2020. Esse valor foi de apenas 1800 em 2019 e a tendência não está a abrandar este ano.
O número de migrantes que chegou ao Reino Unido este ano já ultrapassou os 8500, mais do que os 8461 registados em todo o ano de 2020. Num único dia em Julho, 430 migrantes tentaram fazer a travessia, um novo recorde, segundo a BBC. Há cerca de uma semana, 40 barcos com 1115 migrantes fizeram a travessia em apenas dois dias.
A Secretária do Interior, Priti Patel, tem consistentemente caracterizado o problema como uma questão de “imigração ilegal” e assinou um acordo com a França em Julho para que os dois países colaborassem mais no combate às travessias.
O Reino Unido pagou mais 54 milhões de libras aos franceses como parte do acordo para que a França duplicasse o número de guardas nas suas praias e para que os países partilhassem informações obtidas pelas agências de inteligência.
O governo afirma que “a cooperação em conjunto com os franceses já levou a quase 300 detenções, 65 condenações e evitou mais de 13 500 travessias”. “Com centenas ainda a arriscar as suas vidas para fazer a travessia, todos os lados devem fazer mais”, refere, citado pela BBC.
Cerca de 98% das pessoas que chegam ao Reino Unido requerem asilo, o que torna a sua presença no país legal até que esse pedido seja negado. Um dos objectivos da nova lei é reduzir as chegadas em barcos pequenos ao penalizar os requentes de asilo que sejam oriundos de um país que o governo britânico considere seguro.
Segundo o governo, a lei tem três objectivos principais: fazer o sistema de asilo “mais junto e mais eficaz”, reduzir a “entrada ilegal no Reino Unido” e remover pessoas que “não têm o direito de estar aqui” do país.
Essas penalizações seriam a proibição do pedido de asilo e a tentativa de deportação. Caso a deportação não seja possível, o governo vai ouvir o pedido de asilo. Mesmo que o requerimento seja aprovado, os migrantes em questão não vão ter os mesmos direitos que são geralmente dados e terão um “estatuto de protecção temporário” mais reduzido, durante 30 meses. Durante este período, o governo vai continuar a tentar deportá-los.
Ao contrário do estatuto de refugiado total, a protecção temporária não vai garantir um direito a residência permanente nem permitir que os refugiados se encontrem com a família no Reino Unido. Os migrantes também não podem recorrer a fundos públicos excepto em casos de pobreza extrema.
A lei aumenta também a pena para a entrada ilegal de seis meses de prisão para quatro anos e introduz penas perpétuas para traficantes. Os críticos da lei dizem, no entanto, que a legislação vai levar a que refugiados que precisem de ajuda sejam deportados.
Rossella Pagliuchi-Lor, representante britânica no Alto Comissariado britânico para os Refugiados na ONU, considerou “irónico” que se tenha falado tanto do perigo para os afegãos que tentam abandonar o país com o regresso dos talibãs ao poder enquanto se aprovam leis que abrem a porta a que refugiados afegãos possam ser deportados.
O Alto Comissariado avisou também que o Reino Unido vai criar agora um sistema de asilo com dois escalões, o que contraria a Convenção de Refugiados das Nações Unidas de 1951, que o país assinou. A nova lei discrimina também os requerentes de asilo devido à forma como chegam e não de acordo com as suas verdadeiras necessidades, aponta.
Várias ONGs são também contra também a nova lei dizendo que um dos factores que leva a que os migrantes entrem ilegalmente no Reino Unido é a falta de alternativas legais para o fazerem, já que para pedirem asilo têm de já estar em solo britânico. No entanto, não há forma de pedir um visto para o propósito específico de pedir asilo.