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Cuju: o futebol nasceu assim, no Império chinês

Wikimedia Commons

Detalhe na pintura Cem crianças na longa primavera, de Su Hanchen (entre 1130 e 1160 d.C.).

O futebol deu os primeiros toques na China antiga, com bolas de penas e cabelo e balizas de bambu. Mas não foi criado para entretenimento.

Muito antes de ser o jogo mais amado do mundo, o futebol já dava uns toques na China, onde a elegância, atletismo, cultura e política formaram uma equipa chamada Cuju — a forma mais antiga de futebol documentada na história da humanidade.

Batizado com um nome que diz quase tudo sobre a prática do jogo bonito — ‘Cuju’ significa literalmente ‘chutar bola’ — Cuju nasce cerca de três séculos antes de Cristo, numa tumultuosa fase conhecida como o Período dos Estados Combatentes, de 400 anos de conflitos militares entre sete dinastias pela hegemonia da China.

A bola já era de couro, mas o recheio era bem diferente, com penas e cabelo, como manda o próprio nome do desporto — ‘Cu’ significa ‘chutar’ e ‘ju’ um tipo de bola de couro e penas. O objetivo também já era, na altura, chutá-la para dentro de uma rede, suspensa entre duas varas de bambu a fazer de postes. E também já era proibido usar as mãos.

O Zhu Qiu era a versão cerimonial, mais jogada em eventos da corte imperial, como o aniversário do imperador ou reuniões diplomáticas, com equipas de 12 a 16 jogadores. Mais tarde, surgia o ligeiramente diferente Bai Da, recorda o Ministério da Cultura da China.

De treino militar a “peladinha” para todos

A primeira vez que Cuju aparece é num manual militar da dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.), Zhan Guo Ce. Se hoje chutar a bola — ou vê-la ser chutada — é o que faz muita gente feliz, o Cuju não foi criado para entreter.

O jogo foi originalmente concebido como uma forma de treino militar, destinada a desenvolver a força, agilidade e precisão dos soldados do Império chinês. Mas o exercício era demasiado divertido para se balizar ao sério treino militar. O Cuju começou eventualmente a ser jogado nas cortes, nas praças e nas pequenas ruas das aldeias, e assim terá sido durante a dinastia Han e por mais de 1500 anos da civilização chinesa.

Um estudo publicado a 28 de abril deixa igualmente “fora-de-jogo” a ideia de que o Cuju se limitava a um exercício militar, e mostra, com base em manuais antigos sobre o jogo, várias obras de arte e revistas académicas sobre a história chinesa, como o desporto passou rapidamente a ser promovido pelo governo imperial como uma atividade “unificadora”.

Os imperadores organizavam partidas para o público. Nas cidades, o vasto e culturalmente diversificado império, com comunidades de diferentes origens étnicas e regionais, unia-se pelo Cuju, símbolo dos ideais confucionistas da China antiga de disciplina, respeito e harmonia. Há quase 5.000 anos, já esta forma ancestral de futebol ultrapassava barreiras linguísticas e culturais.

Durante a dinastia Tang (618-907), reforça a investigação de Enzo H. Smith com outros investigadores da Universidade de Portland, o jogo evoluiu para um espetáculo artístico, com movimentos coreografados, música, trajes coloridos e até obstáculos.

As mulheres jogavam com os homens naquele cruzamento entre elegância e técnica, onde o fair-play valia possivelmente mais que os golos — comportamentos antidesportivos eram penalizados.

Na dinastia Song (960-1279) surgiram equipas profissionais, como Qi Yun She ou Yuan She, com treinadores e até patrocinadores. Os jogadores amadores tinham de nomear formalmente um profissional como seu professor e pagar uma taxa antes de se tornarem membros.

Os jogadores profissionais dividiam-se em duas espécies de “divisões”, recorda o ministério: os que eram treinados pela corte real e que atuavam para ela e, nas ruas, os civis que ganhavam a vida a jogar perante os demais.

A bola e as balizas também mudaram neste novo estilo, Bai Da, para uma esférica de ar com um invólucro de duas camadas e outro tipo de baliza: uma com um poste no meio do campo onde os jogadores teriam de acertar com a bola dentro de uma área marcada por cordas para “marcar golo”.

O Bai Da focava-se nas habilidades pessoais. O desempenho era avaliado com base na precisão e na técnica — eram deduzidos pontos por erros como não chutar a bola longe o suficiente, chutar muito longe ou não executar o movimento no momento certo. Os jogadores podiam usar qualquer parte do corpo, exceto as mãos, e o número de participantes variava de dois a dez. O vencedor era o jogador com a maior pontuação.

A conquista mongol e a dinastia Yuan (1271-1368) — a primeira estrangeira a governar a China — ditou o início do fim do Cuju. A nova elite via-o como contraproducente e proibiu-o em certas regiões, fazendo-o “descer de divisão” para os festivais rurais e folclore, apesar de a FIFA reconhecer hoje o Cuju como a forma mais antiga de futebol registada — a par do harpastum romano e o episkyros grego.

Tomás Guimarães, ZAP //

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