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Contra os canhões, marchar, marchar! (mas ninguém o sabe cantar)

Mário Cruz / Lusa

“A Portuguesa” é uma das composições musicais mais conhecidas no nosso país, mas na realidade apenas cantamos um terço do hino nacional. Todos conhecemos os heróis do mar, mas ninguém desfralda a invicta bandeira ou saúda o sol — que normalmente desponta no país do Kimigayo.

Os hinos nacionais são símbolos poderosos de identidade e orgulho nacional, e muitos deles têm histórias interessantes e características peculiares.

É o caso do hino nacional do nosso país.

Composta em 1890, com letra de Henrique Lopes de Mendonça e música de Alfredo Keil, “A Portuguesa” nasceu como canção de cariz patriótico em reação ao ultimato britânico que exigia o abandono das posições portuguesas em África — e que nos tramou o plano do Mapa Cor de Rosa.

Em 1911, a composição viria a ser consagrada como símbolo de Portugal, substituindo o Hymno da Carta, na altura o hino nacional desde maio de 1834.

Apesar de ser uma das composições musicais mais conhecidas e cantadas pelos portugueses, poucos são os que a sabem cantar corretamente — e não estamos a falar dos Anjos.

Há quem salte um ou outro verso, há quem tropece nos “igreijos”… mas isso são detalhes: na realidade, apenas cantamos habitualmente uma parte do hino nacional.

Na sua composição original, “A Portuguesa” não tem apenas a estrofe e o refrão que normalmente cantamos em cerimónias oficiais (ou quando nos apetece dar uso à garganta). Todos conhecemos os heróis do mar, mas quase ninguém desfralda a invicta bandeira ou saúda o sol que desponta.

Com efeito, o hino nacional completo é composto por três partes, cada uma delas com uma estrofe de quatro versos e o conhecido refrão que nos insta a marchar contra os canhões:

1ª Estrofe:
Heróis do mar, nobre povo, nação valente e imortal,
Levantai hoje de novo, o esplendor de Portugal!
Entre as brumas da memória, ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós, que há-de guiar-te à vitória!

Refrão:
Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas! Pela Pátria lutar,
Contra os canhões, marchar, marchar!

2ª Estrofe:
Desfralda a invicta Bandeira, à luz viva do teu céu!
Brade a Europa à terra inteira: Portugal não pereceu
Beija o solo teu jucundo, o oceano, a rugir d’amor,
E o teu braço vencedor, deu mundos novos ao Mundo!

(Refrão)

3ª Estrofe:
Saudai o Sol que desponta, sobre um ridente porvir;
Seja o eco d’uma afronta, o sinal de ressurgir.
Raios dessa aurora forte, são como beijos de mãe,
Que nos guardam, nos sustêm, contra as injúrias da sorte.

(Refrão)

Como diria Mark Twain, talvez a notícia de que quase ninguém canta o hino completo seja manifestamente um exagero — e nem é preciso estar na Marinha para o saber fazer. Aqui fica uma deliciosa interpretação da versão integral de “A Portuguesa”, pelo Coro Infantil do Jardim Escola João de Deus, em Leiria.

O hino mais looongo (e o mais antigo) do mundo

Apesar de ter muito mais para cantar do que a estrofe e refrão mais conhecidos, “A Portuguesa”, com as suas três estrofes, não é propriamente um hino muito longo.

O hino nacional mais longo do mundo é o da Grécia. Baseado num poema escrito por Dionysios Solomos em 1823, o “Hino à Liberdade” tem 158 estrofes, mas geralmente apenas duas são cantadas nas ocasiões oficiais.

Os gregos não se incomodam muito por ver o seu hino interpretado em cerimónias protocolares na versão mais curta.

o mesmo não se passa com os uruguaios, que ficam furiosos quando o “Himno Nacional de Uruguay”, com os seus longos 6 minutos, é encurtado no início dos jogos em competições desportivas internacionais — ou nas (felizmente raras) ocasiões em que um uruguaio sobe ao pódio para receber uma medalha de ouro.

Em contrapartida, o hino nacional mais curto do mundo, “Kimigayo“, é o do Japão: a versão cantada tem apenas 32 sílabas, distribuídas por cinco linhas, o que o torna notavelmente breve em comparação com outros hinos nacionais:

Kimigayo:
君が代は
千代に八千代に
さざれ石の
いわおとなりて
こけのむすまで

Que é como quem diz…

 Que o reinado de Vossa Majestade
Continue por mil, oito mil gerações,
Até que as pequenas pedras
Se tornem rochas imensas
Cobertas de musgo verdejante.

A letra do hino nipónico, a mais antiga do mundo, tem origem num poema do período Heian (794-1185), que celebra o desejo de longevidade e prosperidade do Imperador e da nação. A melodia, por sua vez, foi adicionada no final do século XIX, e então adotada como hino nacional do país.

O hino mais antigo do mundo ainda em uso é no entanto “Wilhelmus”, o hino nacional dos Países Baixos. Foi composto entre 1568 e 1572, durante a Guerra dos Oitenta Anos, numa altura em que os holandeses lutavam contra o domínio espanhol.

“Wilhelmus” foi oficialmente adotado como hino nacional dos Países Baixos em 1932, mas já era uma canção popular muito antes disso. Tem 15 estrofes, e, tal como nós, os holandeses apenas cantam uma.

Hinos da discórdia (e da concórdia)

Raros são os hinos nacionais que são apenas instrumentais, não tendo letra a acompanhar a melodia. É o caso do hino espanhol,  “La Marcha Real”: nuestros hermanos nunca se entenderam em relação às propostas apresentadas, e a última tentativa de o dotar de uma letra foi em 1928.

Quem também nunca se entendeu em relação à letra a usar com o hino foram os bósnios e herzegovinos (e restantes etnias do país): o seu “Državna himna Bosne i Hercegovine” e o hino de San Marino completam o painel dos hinos apenas instrumentais.

Pelo contrário, os sul-africanos conseguiram entender-se, tendo criado um hino que incorpora partes de hinos anteriores em cinco idiomas diferentes: Xhosa, Zulu, Sesotho, Africâner e Inglês.

Também os russos reciclaram o seu hino, que usa uma melodia do tempo da União Soviética. Mas após a dissolução da URSS, em 1991, a letra do hino foi completamente reescrita, e adotada como hino oficial da Rússia em 2000.

Há ainda quem partilhe recursos. É o caso do hino nacional do Bangladesh, “Amar Shonar Bangla”, escrito em 1905 por Rabindranath Tagore. O conceituado poeta e filósofo indiano escreveu também o hino nacional do seu país — o que o torna o único autor de dois hinos nacionais diferentes.

É igualmente o caso do hino nacional do Liechtenstein, “Oben am jungen Rhein”, que usa a mesma melodia de “God Save the Queen“, a composição habitualmente usada como hino do Reino Unido — país que, na verdade, não tem um hino nacional oficialmente estabelecido.

Além disso, após 70 anos como hino britânico, “God Save the Queen” deixou recentemente de o ser. Com a morte da Rainha Isabell II, em 2022, os ingleses viram-se obrigados a mudar o nome (e a letra) do seu hino.

God Save The King, dizem agora os britânicos. Contra os bretões, marchar marchar, dizíamos nós.

Armando Batista, ZAP //

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