Sim, os guiões das séries e filmes estão a ficar mais fáceis e diretos, para podermos fazer scroll descansados, sem perder nada de importante. Relatórios mostram-no.
É dos traços que mais irrita os cinéfilos, o de olhar para o telemóvel de trinta em trinta segundos enquanto se vê um filme ou uma série, mas sejamos sinceros: são cada vez menos as pessoas que vêm televisão com os dois olhos no pequeno ecrã durante o tempo inteiro. Alguns conteúdos reduzem-se, hoje, a barulho de fundo para ajudar a relaxar no sofá ou para se acompanhar enquanto se faz outra tarefa.
A tendência do “segundo ecrã” é real e está cada vez mais presente. Um estudo da YouGov de 2023 revela que 91% dos americanos olham por vezes para os seus telemóveis enquanto veem televisão. Entre os mais jovens, o hábito é ainda mais frequente.
Mostrar em vez de falar: uma arte em decadência
Consciente do crescimento do fenómeno, a Netflix estará a adaptar-se a uma nova era de consumo de séries e filmes, com uma mudança estratégica que envolve remodelar a forma como alguns dos seus conteúdos originais são criados. Por outras palavras, a Netflix está deliberadamente a tornar os seus conteúdos mais “burros”, como descreve o The Guardian este mês.
Relatórios de dezembro da revista n+1 revelam que os executivos da Netflix sugerem frequentemente aos argumentistas que incorporem diálogos que expliquem explicitamente ações ou pontos do enredo, de modo a que o espectador não seja obrigado a olhar para o ecrã.
Segundo o surpreendente relatório, a Netflix diz aos protagonistas: “anunciem o que estão a fazer, para que os espectadores que têm este programa ligado em segundo plano possam acompanhar”. Os diálogos estão lentamente a tornar-se recapitulações para podermos dar ouvidos (e só os ouvidos) à plataforma de streaming.
Mostrar em vez de dizer é uma técnica frequentemente associada ao bom guionismo, mas que pode estar, assim, a desaparecer por causa dos espectadores. Talvez seja por isso que as sitcoms e reality shows reconfortantes e “levezinhos” da plataforma estejam constantemente nas preferências dos consumidores.
O conceito de “TV ambiente” é construído por conteúdos menos exigentes, menos complexos, menos envolventes (como Emily in Paris ou Dream Home Makeover) e os recentes relatórios mostram que a Netflix está a expandir conscientemente este género para se alinhar com as preferências do público — e parece estar a dar frutos.
A Netflix superou as expectativas quanto ao seu número de assinantes, com mais 19 milhões no quarto trimestre de 2024, o que eleva o total para 301,6 milhões, fazendo da plataforma líder da indústria de streaming, divulgou na passada terça-feira a própria empresa. O crescimento traduz-se num aumento de 16% nas receitas do quarto trimestre.
Contactada, a Netflix não tem nada a acrescentar sobre o assunto. Já argumentistas contactados pelo The Guardian, apesar de admitirem que o fenómeno é real, desmentem serem pressionados para escrever guiões mais “burros”.
“Ficaria surpreendido se algum diretor dissesse: ‘escreva isto mal‘”, diz Joe Barton, que escreveu séries como Giri/Haji e Black Doves para a Netflix.
“Penso que não há problema em ter em conta a forma como as redes sociais reduziram a capacidade de atenção de todos a uma polpa”, diz James Hamilton, que escreveu as séries de animação da Netflix Dogs in Space e Jentry Chau vs the Underworld, mas “estaríamos a mentir a nós próprios se não admitíssemos que a maioria de nós tem dificuldade em pousar o telemóvel quando a televisão está ligada e que todos nos distraímos muito facilmente. Mas eu ficaria muito preocupado se algum executivo com quem eu estivesse a trabalhar estivesse a tentar ativamente dar permissão ao nosso público para prestar menos atenção.”
Resta saber agora se a Netflix limitará a sua estratégia de segundo ecrã a determinados conteúdos ou se a adotará como uma caraterística definidora da sua plataforma.