A Estónia está a eliminar a sua herança cultural por medo de Putin

Loode-Boreaallane / Wikimedia

Tartu, Capital Europeia da Cultura 2024

No ano em que a cidade de Tartu, na Estónia, foi Capital Europeia da Cultura, o país deu passos fulcrais para a eliminação da herança cultural deixada pela Rússia, nos últimos séculos. Tudo isto por receio de uma invasão de Putin.

A Lituânia, a Letónia e a Estónia sentem-se de novo ameaçadas pela Rússia. Ao longo do século XX, os Estados Bálticos tiveram de lutar contra a Rússia pela sua própria existência. Atualmente, o legado desta história recente paira sobre a geopolítica regional contemporânea.

A ocupação russa da Crimeia em 2014 e a subsequente invasão em grande escala da Ucrânia em 2022 reacenderam os receios nos três países.

Como é compreensível, os Estados bálticos estão agora a redobrar os seus esforços em matéria de defesa e segurança. Cada um deles aumentou as suas despesas com a defesa.

Estão também a investir numa linha de defesa conjunta do Báltico que inclui centenas de bunkers fortificados e obstáculos anti-tanque.

Os três países são apoiados por unidades militares multinacionais da NATO e fazem também parte da força expedicionária conjunta, uma parceria militar multinacional liderada pelo Reino Unido.

A investigadora de geopolítica da Universidade de Cambridge, Juliette Breta, conta no The Conversation que, no ano passado, esteve em Tartu, na Estónia, a ajudar a organizar um evento no âmbito do ano da cidade como capital europeia da cultura.

O tema do programa era “Artes da Sobrevivência” – no qual a importância da relação entre Tartu (e a própria Estónia) e a Europa foi fortemente realçada.

Tartu, a segunda maior cidade da Estónia, fica a cerca de 40 km da fronteira com a Rússia e já sofreu interferências do seu vizinho maior. Em maio de 2024, a Rússia foi acusada de perturbar os sinais GPS dos aviões, o que levou a companhia aérea finlandesa Finnair a suspender os voos diários para o aeroporto de Tartu.

Língua – um novo campo de batalha

Uma questão que emergiu do programa “Artes da Sobrevivência” foi a forma como a herança cultural báltica e russa partilhada pela Estónia afeta a vida quotidiana em Tartu e no país em geral. A cultura em geral – e a língua, mais especificamente – está a tornar-se uma espécie de campo de batalha na Estónia.

Mais de 300.000 pessoas na Estónia são falantes nativos de russo – o que equivale a de 27% da população.

O Governo receia que o Presidente russo, Vladimir Putin, possa justificar um ataque ao país alegando que vem em defesa destes falantes de russo. Esta foi – como escreve Juliette Breta – uma das suas justificações para invadir a Ucrânia em 2022.

O choque de culturas e a delicadeza da barreira linguística na Estónia talvez sejam mais bem ilustrados pela situação em Narva, que competiu com Tartu para ser a capital europeia da cultura em 2024.

Narva, a terceira maior cidade do país, situa-se diretamente na fronteira com a Rússia e mais de 95% da população tem o russo como língua materna. Em 2022, depois de lançar a invasão da Ucrânia, Putin afirmou que seria justificável “retomar e proteger” a cidade de 53.000 habitantes.

Desde então, a Rússia tem exercido uma pressão intensa, colocando regularmente drones e dirigíveis de vigilância e interferindo nas marcações fronteiriças.

Eliminar a herança cultural

Nos últimos anos, os governos estónios têm optado por sublinhar a independência do país, removendo objetos que refletem a herança cultural russa.

Entre esses objetos contam-se muitos monumentos de guerra da era soviética. O Governo estónio argumenta que estes não têm lugar nos espaços públicos da Estónia, uma vez que glorificam a ocupação russa.

O início do ano letivo em setembro marcou também o início da transição do sistema escolar do país para o ensino exclusivamente em língua estónia.

De uma forma geral, os especialistas que participaram no painel sobre as artes da sobrevivência observaram que existe um sentimento crescente de identidade nacional da Estónia e de orgulho nos feitos do país.

A sociedade estónia está a rejeitar expressões do imperialismo russo em favor de uma identidade mais europeia.

No entanto, o painel sublinhou a importância de uma atitude positiva, pragmática e inclusiva dos estónios em relação aos falantes de russo.

Os organizadores sublinharam também a necessidade de apoiar as vozes ativas e liberais de oposição, que agora enfrentam a desconfiança dos seus compatriotas de língua estónia.

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