A edição cerebral está “cada vez mais próxima da realidade”: as ferramentas de alteração genética que estão a enfrentar doenças mortais. Resultados impressionantes em ratos abrem caminho a avanços na edição genética para doenças neurológicas.
Os cientistas estão cada vez mais próximos de aplicar a edição do genoma a um novo alvo formidável: o cérebro humano.
Nos últimos dois anos, uma série de avanços tecnológicos e resultados promissores em ratos têm vindo a lançar as bases para tratar doenças cerebrais devastadoras através de técnicas derivadas da edição genética CRISPR–Cas9.
Os investigadores acreditam que os ensaios em humanos poderão estar apenas a alguns anos de distância.
“Os dados nunca pareceram tão bons”, afirma Monica Coenraads, fundadora e diretora executiva da Rett Syndrome Research Trust, em Trumbull, Connecticut, à revista Nature. “Isto é cada vez menos ficção científica e cada vez mais realidade.”
Um desafio assustador
Os investigadores já desenvolveram terapias de edição genética para tratar doenças do sangue, do fígado e dos olhos. Em maio, foi relatado um sucesso extraordinário ao utilizar uma terapia de edição genética personalizada para tratar um bebé chamado KJ Muldoon, que sofria de uma doença hepática mortal.
Mas o cérebro coloca desafios especiais. Os componentes moleculares usados para tratar KJ foram inseridos em partículas gordas que se acumulam naturalmente no fígado.
Agora, os cientistas procuram partículas semelhantes que consigam direcionar-se seletivamente ao cérebro, protegido por uma barreira defensiva que impede muitas substâncias de entrar.
Embora a história de KJ seja entusiasmante, também é frustrante para famílias de pessoas com doenças neurológicas, explica Coenraads, cuja organização se dedica à síndrome de Rett, uma doença rara que afeta o desenvolvimento cerebral.
“A pergunta que ouço das nossas famílias é: ‘Foi feito tão rapidamente para ele. Porque é que para nós está a demorar tanto?’”, diz.
Esse grupo de famílias preocupadas está a crescer, à medida que médicos e familiares recorrem cada vez mais ao sequenciamento genómico para encontrar as causas de doenças cerebrais até há pouco tempo misteriosas, diz Cathleen Lutz, geneticista do The Jackson Laboratory, em Bar Harbor, Maine.
“As pessoas estão a começar a descobrir que, por exemplo, as convulsões do seu filho estão relacionadas com mutações genéticas específicas”, explica.
Cortar e coser
Estudos em ratos sugerem que a tecnologia de edição genética, que consegue reescrever pequenos trechos do genoma de uma célula, já está pronta para corrigir algumas dessas mutações.
Em julho, investigadores relataram ter reparado mutações que, em humanos, causam uma doença chamada hemiplegia alternante da infância (AHC). A condição, que geralmente surge antes dos 18 meses de idade, provoca convulsões, dificuldades de aprendizagem e episódios de paralisia parcial.
“É uma doença horrível”, afirma David Liu, biólogo químico do Broad Institute of MIT and Harvard, em Cambridge, Massachusetts.
Liu e a sua equipa aplicaram em ratos com uma mutação causadora de AHC uma versão derivada do CRISPR chamada prime editing. A técnica corrigiu a mutação em cerca de metade do córtex cerebral, uma região responsável pela aprendizagem e memória.
Os ratos também mostraram melhorias em vários aspetos: episódios convulsivos menos graves, melhor desempenho cognitivo e motor, e uma maior esperança de vida. “Os resultados nos ratos foram impressionantes”, diz Liu. “Ficámos surpreendidos.”
O laboratório de Liu trabalha ainda em ratos para corrigir mutações responsáveis por duas outras doenças neurológicas em humanos: a doença de Huntington e a ataxia de Friedreich.
Já na Shanghai Jiao Tong University School of Medicine, na China, o neurocientista Zilong Qiu e a sua equipa utilizaram a base editing para corrigir uma mutação no gene MEF2C. Em crianças, esta mutação pode provocar epilepsia, défice intelectual e dificuldades na fala.
Nos ratos machos, a mesma mutação altera o comportamento social entre pares. A correção da mutação no Mef2c através de base editing — uma versão ultraprécisa do CRISPR que corrige letras individuais de ADN — restaurou comportamentos sociais normais e melhorou as ligações entre células nervosas.
Qiu e Liu trabalham também, de forma independente, em terapias de edição genética para tratar a síndrome de Rett, geralmente causada por mutações no gene
MECP2.
Uma abordagem de edição genética é particularmente importante neste caso, sublinha Coenraads: simplesmente adicionar uma cópia extra e normal do gene MECP2, como faria uma terapia genética convencional, pode levar a que as células produzam proteína em excesso. Níveis elevados dessa proteína podem ser tóxicos.
Mas a edição genética permitiria apenas corrigir a cópia natural do gene, reduzindo o risco de uma produção excessiva de MECP2, explica Qiu.
Obstáculos financeiros
O caminho entre resultados em ratos e ensaios clínicos em humanos é longo.
Qiu espera que a sua equipa esteja pronta, dentro de cerca de cinco anos, para testar uma terapia de base editing em pessoas com síndrome de Rett. E a equipa de Liu acredita que, nos próximos anos, poderá concluir os estudos necessários para avançar para ensaios em humanos com AHC.
Como as partículas gordas usadas no tratamento de KJ ainda não são uma opção, ambas as equipas antecipam que os ensaios clínicos venham a usar um vírus chamado AAV9 (adeno-associated virus 9) para transportar os componentes de edição genética até ao cérebro. Este vírus consegue infetar células cerebrais e atravessar parcialmente a barreira hematoencefálica.
Contudo, o AAV9 implica riscos, pois doses elevadas podem desencadear respostas imunitárias fatais. Os investigadores estão a correr contra o tempo para desenvolver versões melhoradas que possam ser administradas em doses mais baixas.
A organização de Coenraads também financia esforços para desenvolver métodos sem recurso a vírus que consigam entregar moléculas às células cerebrais.
No fim, o maior obstáculo poderá não ser tecnológico. Nos Estados Unidos, a indústria da biotecnologia atravessa uma prolongada crise financeira. Alguns investidores afastaram-se das terapias genéticas e da edição genética, caras e difíceis de produzir. “O financiamento está a esgotar-se”, afirma Coenraads, que procura manter-se otimista.
“As coisas funcionam como um pêndulo”, conclui. “Por agora, penso que temos de manter a cabeça baixa e continuar a produzir bons dados”.