O primeiro bloco de notas da humanidade é um osso com 70 mil anos — muito antes da escrita

Joeykentin / Wikipedia

O osso de Ishango

Uma equipa internacional de investigadores identificou aquilo que poderão ser os primeiros sistemas de memória artificial criados pelos humanos, gravados em ossos há dezenas de milhares de anos.

Estas descobertas, apresentadas num artigo publicado no mês passado na revista Archaeological and Anthropological Sciences, sugerem que os nossos antepassados já usavam objetos para registar informação — muito antes da invenção da escrita.

Os Sistemas de Memória Artificial (SMA) são ferramentas que permitem armazenar e recuperar informação fora do cérebro humano. Exemplos modernos incluem desde computadores até às varas de contagem utilizadas na Idade Média para manter registos fiscais.

O estudo agora apresentado sugere que estes sistemas poderão ter as suas raízes no Paleolítico, gravados em ossos ou cornos de animais.

Segundo o LBV,  o estudo analisou 22 artefactos arqueológicos, alguns com mais de 70.000 anos, juntamente com exemplos etnográficos mais recentes, como calendários de madeira de culturas indígenas.

Os investigadores compararam depois as marcas nestes objetos com outras feitas por atividades quotidianas como o abate de animais ou decorações simbólicas.

Nem todas as marcas em ossos antigos têm significado. Para identificar possíveis SMA, a equipa procurou padrões específicos, como marcas ordenadas e uniformemente espaçadas que não estão agrupadas aleatoriamente mas dispostas regularmente.

Os investigadores procuraram também mudanças nas ferramentas utilizadas, indicando que as marcas foram feitas em momentos diferentes, como se atualizassem um registo, e o facto de as marcas estarem frequentemente alinhadas com precisão, ao contrário das feitas durante o corte de carne.

Estes objetos exibem uma organização espacial sistematicamente diferente, que os distingue de outros artefactos, nota o estudo.

Entre os objetos analisados encontram-se um osso de babuíno com 44.000 anos encontrado em Border Cave, na África do Sul, que apresenta marcas que poderão representar contagem.

Foram também analisados um corno de rena com 15.000 anos, encontrado em La Marche, França, que está dividido em secções para “armazenar” informação, além de varas de contagem medievais e calendários indígenas, que mostram padrões semelhantes aos do Paleolítico.

Os SMA etnográficos e do Paleolítico Superior partilham assinaturas espaciais que os distinguem claramente de ossos com marcas de abate ou decorativas, concluem os autores.

Para que eram utilizados?

Embora não possamos saber ao certo o que estas marcas registavam, existem várias hipóteses para explicar os padrões encontrados.

Uma destas hipóteses é a de que poderão ter servido para contar dias ou eventos, como os calendários lunares de algumas culturas. Poderão também ter sido listas de objetos ou pessoas, sem necessidade de números exatos, como as “varas de mensagem” dos aborígenes australianos.

Poderão também ter sido sistemas proto-matemáticos, talvez para comparar quantidades (“mais” ou “menos”).

O estudo nota que nem todos os povos antigos tinham conceitos numéricos complexos. Algumas culturas, como certas tribos amazónicas, têm apenas palavras para “um”, “dois” e “muitos”. Portanto, estes SMA poderão refletir um passo intermédio na evolução da quantificação.

Estas descobertas revelam que a necessidade de registar informação é tão antiga como a nossa espécie. Registar informação em objetos é uma forma de representação externa que define uma tecnologia de comunicação, realçam os autores do estudo.

Por outras palavras, estes ossos não eram apenas “pen drives” paleolíticas mas também ferramentas para transmitir conhecimento dentro de um grupo.

O estudo oferece também um método inovador para analisar marcas antigas: utilizando estatísticas espaciais, os investigadores mediram a colocação de cada incisão como se fossem pontos num mapa. Isto permite uma distinção objetiva entre um osso gravado por acaso e um com intenção simbólica.

Quem os Criou?

Alguns dos objetos mais antigos provêm de sítios associados ao Homo sapiens, mas há também casos, como um osso de Les Pradelles (França, 72.000–60.000 anos), que poderão estar ligados aos Neandertais.

Isto abre um debate: seriam outros hominídeos capazes de criar sistemas de memória? Os autores pedem cautela, mas não excluem a possibilidade.

O estudo não é sobre ossos; é sobre como começámos a pensar. Estas marcas poderão refletir um passo crucial na transição das capacidades cognitivas básicas — como distinguir entre “poucos” e “muitos” — para conceitos abstratos como números, explicam os investigadores.

Estes objetos são mais do que curiosidades arqueológicas; são as primeiras pistas sobre como começámos a domesticar o tempo, a quantidade e talvez a própria ideia do futuro.

ZAP //

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