Mercado clandestino do tráfico de órgãos humanos “atingiu um nível epidémico”. É abastecido por pessoas em situação vulnerável em países como Egito, Líbia, África do Sul, Quénia e Nigéria.
A venda de órgãos humanos é ilegal em toda a África. No entanto, em 2022, a direção do Hospital Nacional Kenyatta, em Nairóbi, no Quénia, decidiu publicar no Facebook uma mensagem que clarificava os cidadãos: “Nós não compramos rins!”.
Segundo a instituição médica, “Quanto custa o meu rim?” era a pergunta mais recebida nos seus canais de comunicação.
O crescente comércio de órgãos humanos “atingiu um nível epidémico” no continente, mas o problema não recebe a devida atenção, alerta um advogado nigeriano de direitos humanos à DW.
“Seria de esperar que o nível de condenação pública contra isto fosse muito maior, mas não é o caso”, avisa Frank Tietie.
Um relatório da Global Financial Integrity (GFI), um think tank sediado em Washington DC focado em corrupção, comércio ilícito e branqueamento de capitais, estimou que entre 840 milhões e 1,7 mil milhões de dólares (750 milhões e 1,5 mil milhões de euros) são gerados anualmente pelo tráfico de pessoas para remoção de órgãos em todo o mundo.
É importante salientar que a doação e o transplante de órgãos são práticas médicas bem estabelecidas e que salvam vidas. Estes procedimentos podem ser muito bem-sucedidos — quando conduzidos com consentimento e transparência.
Mas há preocupações de que, muitas vezes, a doação de órgãos seja motivada “principalmente pela pobreza, em vez da nobre motivação de tentar salvar uma vida ou ajudar a condição médica de alguém”, disse Tietie à DW.
Segundo o advogado, há casos em que equipas médicas sem escrúpulos negociam órgãos dos seus pacientes sem que estes saibam.
Dinheiro rápido
Willis Okumu, investigador sénior do Instituto de Estudos sobre Segurança, explica que nem todos os transplantes “irregulares” são forçados. Ao investigar o comércio de órgãos em Eldoret, cidade no oeste do Quénia, o investigador encontrou jovens dispostos a vender os seus rins por “dinheiro rápido”: “Eles não estavam realmente a ser coagidos de forma alguma”, lembrou.
Um recetor de rim pode pagar mais de 150 mil dólares (mais de 134 mil euros), de acordo com um documento do Parlamento Europeu. Okumu salienta, no entanto, que uma pequena parte desse dinheiro vai para o dador – estes recebem ofertas de até 6.000 dólares (5362,17 euros) pelo órgão.
O investigador relata ter visto “vários jovens com cicatrizes no abdómen”, que denuncia que tinham passado pelo procedimento. Andavam sem receio de serem processados, pois era difícil para as autoridades fazer cumprir a lei.
“A maioria deles, quando regressava, tinha investimentos ou tinha comprado uma mota ou construído uma nova casa”, acrescentou Okumu, que explica que os dadores tornam-se recrutadores de outros jovens para doarem os seus rins, alimentando um mercado negro que cresce fora do Quénia.
Os rins são os órgãos mais comuns nos transplantes legais e ilegais, e os mais baratos no mercado negro, uma vez que podem vir de dadores vivos.
Dadores vulneráveis, recetores ricos
Embora seja difícil aceder aos detalhes sobre o mundo ilícito do tráfico de órgãos, acredita-se que o Egito, a Líbia, a África do Sul, o Quénia e a Nigéria sejam os países mais afetados pelo problema em África. O porquê é complexo, e a regulamentação de transplantes e doação de órgãos difere de região para região.
O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) tem chamado a atenção para a questão do tráfico de pessoas para remoção de órgãos – também conhecido como turismo de transplante –, e para como os órgãos transplantados ilicitamente fluem de populações vulneráveis para recetores mais ricos.
De acordo com o Observatório Global de Doação e Transplante de Órgãos, menos de 10% dos transplantes necessários no mundo são realizados, o que acaba por atrair pacientes para o mercado ilegal.
Há também um número comparativamente baixo de centros médicos que realizam transplantes legais em África. Um documento da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2020 listou apenas 35 centros de transplante renal para todo o continente africano. A escassez do serviço é atribuída à dificuldade em aceder a profissionais, à especialização limitada e à falta de recursos financeiros.
Uma operação sofisticada
A natureza ilícita e lucrativa do negócio implica muita organização das redes de tráfico de órgãos. As competências necessárias para realizar cirurgias complexas – tanto no dador como no recetor –, a ligação entre compradores e vendedores, além do esforço para contornar a fiscalização de agências internacionais, exige o envolvimento de membros do setor médico, grupos criminosos locais e até mesmo políticos.
Okumu acredita que o que viu no oeste do Quénia faz parte de uma associação maior de traficantes internacionais de partes do corpo humano. Os jovens que conheceu “falavam de médicos que não falavam suaíli e eram de origem indiana”, o que o levou a concluir que a operação era internacional.
No ano passado, um júri em Londres condenou o senador nigeriano Ike Ekweremadu, a sua esposa e um médico por conspirar para obter o rim de um jovem de Lagos. O veredicto foi o primeiro, de acordo com a Lei da Escravatura Moderna do Reino Unido (de 2015), a condenar suspeitos de um plano de recolha de órgãos.
Para o advogado de direitos humanos Tietie, a perspetiva de ganho financeiro com órgãos humanos levou a receios de que as “fábricas de bebés” na Nigéria – instalações para as quais raparigas e mulheres jovens são atraídas, engravidadas e mantidas contra a sua vontade até darem à luz – também pudessem tornar-se alvos de traficantes de órgãos, destacando “a estreita ligação entre o tráfico de pessoas e a recolha de órgãos”.
Tietie enfatiza a responsabilidade dos centros médicos diante do problema.
“O que acontece quando uma equipa médica, médicos de hospitais elitistas em Abuja e Lagos, se apresentam aos seus pacientes ricos e dizem-lhes que não se preocupem, que podem arranjar um rapaz pobre para vender esses órgãos?”, afirmou.
ZAP // DW