Uma equipa de investigadores descobriu uma bactéria intestinal que consegue alterar os grupos sanguíneos de um dador — uma descoberta que pode mudar as regras do jogo e resolver os problemas de escassez de sangue tipo 0, grupo sanguíneo aceite universalmente pelos recetores.
Quando uma vida está em risco, as transfusões de sangue podem ajudar a sustentar um doente – mas apenas se o tipo de sangue do dador for compatível.
Uma nova descoberta de investigadores dinamarqueses e suecos pode ajudar nessas situações de emergência, ao mesmo tempo que reduz a escassez global de reservas de sangue.
A equipa identificou uma mistura de enzimas produzidas por uma espécie de bactéria que se encontra nos nossos intestinos e que, em estudos laboratoriais, consegue transformar os glóbulos vermelhos no tipo universal O com uma “eficiência notavelmente elevada”.
A técnica desenvolvida, baseada numa ideia concebida há 40 anos, mas apenas agora posta em prática, foi apresentada num artigo publicado esta segunda-feira na Nature Microbiology.
Como quase todas as células do corpo humano, explica o Science Alert, os glóbulos vermelhos estão cobertos por uma penugem de estruturas açucaradas únicas.
Estas estruturas variam de pessoa para pessoa, sendo que algumas têm estruturas do tipo A e outras do tipo B. Algumas têm ambas as estruturas A e B e outras não têm nenhuma, sendo designadas por O.
Os sistemas imunitários que nunca viram os tipos A ou B atacam e destroem estas células logo à primeira vista se as receberem numa transfusão, ao passo que o sangue de tipo O é aceite pela maioria dos recetores — sendo as pessoas com este tipo sanguíneo habitualmente consideradas “dadores universais“.
Devido a esta versatilidade, as reservas de sangue tipo O encontram-se frequentemente esgotadas, especialmente em emergências médicas em que os médicos têm de atuar rapidamente sem conhecer o tipo de sangue do doente.
A conversão de glóbulos vermelhos no tipo universal O não é uma ideia nova. A técnica foi iniciada em 1982, quando os cientistas descobriram uma enzima extraída dos grãos de café que podia retirar às células do tipo B os seus açúcares de superfície.
Mas essa reação enzimática era muito ineficaz, o que tornava impraticável a sua utilização em larga escala e, apesar da promessa inicial em ensaios clínicos, surgiram preocupações de segurança.
Por razões desconhecidas, o sangue do dador continuava, por vezes, a ser incompatível com os receptores, apesar de as células do dador terem sido despojadas de quase todos os seus antigénios.
Por isso, os cientistas voltaram à estaca zero, e, em 2019, começaram a procurar outras enzimas em coleções de bactérias intestinais.
O que é complicado é que existem agora, desde 2022, mais de 40 sistemas de grupos sanguíneos para além do sistema ABO e do fator rhesus com que a maioria está familiarizada.
Mesmo dentro dos grupos sanguíneos A e B, existem subtipos, com diferentes comprimentos e densidades das moléculas de assinatura que sobressaem das membranas dos glóbulos vermelhos.
“O nosso artigo relata a descoberta de enzimas extremamente eficientes, não só contra os antigénios A e B, mas também contra as suas extensões”, escrevem Mathias Jensen e Linn Stenfelt, bioengenheiros da Universidade Técnica da Dinamarca, no artigo publicado com os seus colegas suecos.
Com base em trabalhos anteriores de outras equipas, os investigadores selecionaram algumas enzimas candidatas produzidas pela bactéria intestinal Akkermansia muciniphila e trataram com elas glóbulos vermelhos de vários dadores e de vários subtipos A e B.
É importante notar que, para uma potencial utilização clínica, as enzimas foram incubadas com elevadas concentrações de glóbulos vermelhos, à temperatura ambiente e durante apenas 30 minutos – melhorando o processamento mais longo e as condições menos eficientes dos candidatos anteriores.
“Estas condições suaves sem aditivos (por exemplo, dextrano), juntamente com excelentes eficácias enzimáticas, são parâmetros de viabilidade importantes em aplicações clínicas”, referem os autores do estudo.
Crucialmente, as enzimas escolhidas também removeram as quatro extensões conhecidas dos antigénios dos grupos A e B dos glóbulos vermelhos, para além dos antigénios A e B mais curtos e canónicos de outros subtipos de sangue.
A remoção das extensões longas e açucaradas reduziu a incompatibilidade das células do tipo B tratadas com amostras de plasma para menos de 9% e tornou as reações menos graves nos casos em que ocorreram.
É necessário mais trabalho para compreender por que razão uma pequena fração de glóbulos vermelhos aparentemente sem açúcar ainda reage de forma cruzada com plasmas do grupo O e para melhorar a conversão de glóbulos do grupo A.
No entanto, ao encontrar enzimas que removem uma maior variedade de antigénios A e B, os investigadores consideram que o seu estudo desvenda “o elo que faltava” na produção de sangue universal para transfusão e, potencialmente, de órgãos para transplante.
Em 2022, os investigadores utilizaram uma estratégia semelhante (com enzimas diferentes) para converter pulmões doados do tipo sanguíneo do grupo A para o tipo universal O em condições laboratoriais.
Este novo trabalho poderá melhorar esses esforços o suficiente para satisfazer as normas de segurança exigidas para os ensaios de transplantes em humanos.
Os glóbulos vermelhos cultivados em laboratório estão também a ser testados em seres humanos para verificar se duram mais do que o sangue doado. Se assim for, isso poderá reduzir a procura de sangue e também ajudar os doentes que necessitam de transfusões repetidas a evitar complicações.