“Trataram a Palestina como um animal de estimação”. Há um culpado da guerra em Israel

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Rusty Stewart / Flickr

As promessas contraditórias do Reino Unido sobre quem controlaria a Palestina após a Primeira Guerra Mundial estão na origem da violência que a região está a viver até hoje.

De vez em quando, somos relembrados do conflito entre a Palestina e Israel quando ocorre uma nova escalada de tensão e um consequente banho de sangue. Mas o vasto e longo contexto histórico da guerra fica muitas vezes de fora da cobertura mediática dos acontecimentos.

Na verdade, as sementes do choque israelo-palestiniano que se arrasta até hoje foram plantadas há mais de 100 anos pelo colonialismo europeu, mais especificamente pelo Reino Unido.

A terra prometida a tudo e todos

Desde o século XVI que a região da Palestina estava sob a alçada do Império Otomano, até que o início da Primeira Guerra Mundial mergulhou a superpotência numa grande incerteza.

Na busca de aliados, os ingleses começaram prometer várias partes do Império Otomano a quem os ajudasse a derrotar o Império. O problema surgiu quando os britânicos começaram a prometer a mesma região a vários grupos, com a Palestina a ser oferecida aos árabes, aos judeus e aos franceses.

Um dos documentos-chave que suportam a causa palestiniana é a Correspondência McMahon-Hussein, referente a uma série de 10 cartas trocadas entre Henry McMahon, o Alto-Comissário britânico no Egipto, e Hussein bin Ali, Xarife de Meca, entre 1915 e 1916. Nas cartas, Hussein bin Ali aceitou avançar contra os otomanos em troca do apoio britânico à formação de um país independente na Palestina.

Ao mesmo tempo que negociavam uma aliança com os árabes, os ingleses assinaram o Acordo Sykes-Picot em 1916 com a França e com o conhecimento da Rússia. O documento secreto determinava como os Aliados iriam dividir o Império Otomano entre si e indicava que a Palestina seria administrada sob um regime internacional — dada à sua importância religiosa e histórica para várias comunidades — com a Inglaterra e a França a partilharem algum grau de supervisão na região.

A polémica Declaração de Balfour

Como se dois planos diferentes para a Palestina não bastassem, os ingleses causaram surpresa no mundo árabe a 2 de Novembro de 1917, quando assinaram a Declaração de Balfour, onde se comprometiam a estabelecer um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina.

Até hoje, não se sabe ao certo o que motivou o apoio súbito dos ingleses aos sionistas — um movimento internacional que defende a criação do Estado judaico de Israel na Palestina — especialmente dado que, em 1917, os judeus representavam apenas cerca de 3% da população na região.

A questão já alimentou várias teorias entre os historiadores, com alguns a sugerir que os ingleses queriam agradar aos judeus sionistas nos Estados Unidos e na Rússia, na esperança de que estes usassem a sua influência para pressionar os seus Governos a continuar na Primeira Guerra Mundial.

Outros especulam que vários membros do Governo britânico eram eles próprios sionistas ou que o crescimento do anti-semitismo na Europa levou a que Londres decidisse quer era melhor dar um lar seguro aos judeus.

A própria linguagem da Declaração de Balfour continua a ser contestada até aos dias de hoje, dado defender a criação de um “lar nacional” em vez de um “Estado”, o que deixa a sua interpretação em aberto.

O falecido Awni Abd al-Hadi, uma figura política palestiniana e nacionalista, condenou a Declaração de Balfour nas suas memórias, dizendo que esta foi emitida por um estrangeiro inglês que não tinha legitimidade para decidir sobre a Palestina.

Com o fim da Primeira Guerra Mundial e a queda do Império Otomano, teve início o Mandato Britânico da Palestina — uma entidade geopolítica sob administração britânica que assumiu a gestão da Palestina.

Se até então a convivência entre os árabes e os judeus na região era pacífica, as promessas contraditórias dos ingleses começaram a acender a tensão, com os palestinianos a sentirem-se traídos e a protestar em massa contra a imigração judaica, que aumentou sob o Mandato Britânico.

Imigração em massa de judeus

Ao longo das décadas seguintes, milhões de judeus começaram a mudar-se em massa para a Palestina devido a vários factores políticos e sociais:

  • Incentivos dos britânicos: o Mandato Britânico criou grandes quotas migratórias para judeus e colaborou de perto com grupos sionistas.
  • Oportunidades de Emprego: O governo do Mandato incentivou o desenvolvimento agrícola e industrial na Palestina, o que, por sua vez, criou oportunidades de emprego que atraíram imigrantes judeus.
  • Perseguição na Europa: O aumento do anti-semitismo, muito à boleia do crescimento do nazismo na Alemanha e do subsequente genocídio quando Hitler chegou ao poder, obrigou muitos judeus a fugir.
  • Comunidade e Identidade: A possibilidade de viver numa comunidade judaica, onde os judeus poderiam celebrar abertamente as suas tradições culturais e religiosas, tornava a Palestina um destino particularmente atraente.

“Foi um caos”

O domínio britânico da Palestina foi tudo menos pacífico e a repressão era frequente. Os pais de Eid Haddad eram adolescentes quando testemunharam a força utilizada pelas tropas britânicas na Palestina em 1938.

“Eles viram as tropas entrarem e atacarem as pessoas. O meu pai contou-me que bateram com um martelo de madeira usado para picar carne, chamado de ‘modakah’ em árabe, na cabeça de um homem, e ele morreu. Outro homem e o seu filho estavam pendurando folhas de tabaco para secá-las. Eles simplesmente foram baleados pelas costas. Foi um caos”, recorda Haddad à BBC.

Os palestinianos não foram as únicas vítimas, havendo também relatos de violência contra os judeus. No meio de uma rebelião das milícias sionistas, o Reino Unido chegou a repelir navios com judeus que estavam a fugir do Holocausto.

“Os britânicos não sabiam como lidar com essas coisas. Eles trataram a Palestina como se fosse um animal de estimação. É bom tê-la, mas realmente não deveria causar muitos problemas”, afirma o historiador israelita Tom Segev.

Sem fim à vista

Dois anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1947, o Reino Unido passou a batata quente da gestão da Palestina para a recém-formada Organização das Nações Unidas (ONU), que teve de tomar uma enorme decisão sobre quem ficaria com o controlo do território.

Em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução 181, que recomendava a divisão da Palestina em dois estados independentes, um árabe e um judeu, com Jerusalém a ser a capital de ambos e a ficar sob administração internacional.

O plano dava 55% do território a Israel e 42% ao Estado da Palestina, apesar de 67% da população da região ser árabe, contra cerca de 33% de judeus. Embora os judeus tenham aceite o plano de divisão, ele foi rejeitado pelos árabes, tanto na Palestina como nos estados árabes vizinhos.

IJA / Wikimedia

Mapa da Resolução 181 da ONU, que determina a divisão da Palestina. O território em azul seria para os judeus e o verde para os árabes, com o rosa a representar Jerusalém

Apesar da oposição dos árabes, o plano foi aprovado e, pouco depois, o Estado de Israel foi oficialmente reconhecido, a 14 de Maio de 1948 — um dia que ficou conhecido como Al-Nakba para os palestinianos, que se traduz para “a catástrofe”.

O nascimento de Israel fez estourar a Primeira Guerra Árabe-Israelita, que os israelitas ganharam em 1949. O resultado deste conflito foi a expansão territorial de Israel além das fronteiras determinadas pela ONU e a expulsão de mais de 750 mil palestinianos das suas casas.

Esta expansão continua a aumentar até aos dias de hoje, com os israelitas a construir colonatos ilegais na Cisjordânia, que é internacionalmente reconhecida como parte do território palestiniano.

Por estes dias, a história volta a repetir-se, com a região a viver mais um capítulo sangrento na sua longa história de conflito.

Adriana Peixoto, ZAP //

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9 Comments

  1. Parabéns à autora pelo texto conciso mas bem estruturado e que permite uma visão mais clara do que se passou e que agora culmina em mais um momento trágiconesta história que parece não ter fim à vista…

  2. …este sim é um excelente artigo, faltam eventualmente algumas observações sobre a forma como cada um dos lados exerceu a sua pressão, quase sempre de forma extremamente sangrenta e desumana, dos apoios internacionais que foram surgindo que radicalizaram ainda mais a contestação apesar de algumas tentativas muito pouco convincentes de reconciliação, das duas autoridades que administram de forma diferente Gaza e Cisjordânia, até porque dada a complexidade da questão há sempre muito mais para quem quiser realmente tentar entender porque é que o injustificável se tornou inevitável, mas parabéns, há muito que não lia algo tão bem elaborado por aqui.

  3. Excelente artigo caro ZAP. Faltava só colocar a evolução do mapa de Israel/Palestina desde esse altura (isso está facilmente disponível em vários sites da internet). De relembrar que, historicamente, segundo reza a lenda, os judeus moravam nessa região há 2000 anos mas foram expulsos pelos romanos, certo?

  4. Em resumo, toda esta guerra se teria evitado se os Árabes tivessem aceitado o acordo posposto pela ONU em
    1947. Foram gulosos, recusaram esse acordo, e depois tentaram entrar em guerra com Israel várias vezes, incluindo a guerra dos 6 dias em 1967 na qual vários países árabes tentaram invadir Israel. Como sempre foi desde o início da humanidade, quem perde uma guerra perde território.

    Israel fez o que tinha que fazer para proteger a sua própria existência. Convém não esquecer que o Hamas tem declarado no seu manifesto, preto no branco, que o seu objectivo número 1 é a completa e total destruição de Israel, e está escrito explicitamente que nenhuma solução pacífica ou de compromisso será aceite.

    Quem semeia ventos, colhe tempestades.

  5. Segundo o texto, que está em bom português,a proposta de divisão apresentada pela ONU consistia em 55% de território para a formação de Israel e 42% para a Palestina, apesar de 67% da população ser árabe e apenas 33% ser judia. E os árabes é que foram gulosos? Talvez se a divisão tivesse sido exacta, todo o processo tivesse corrido melhor. Isso e Israel não ter tido sempre o apoio militar incondicional dos EUA, ( que ao invés deveria sim, ter promovido a mediação enérgica para a paz). Com as calças do meu pai sou um homem!

  6. Muito bom trabalho. Não é nada de novo. é historia com registo documental. Pois registos históricos com 2000+ anos de fronteiras que já não existem. Pois na realidade São linhas muito dinâmicas ao longo dos tempos (movem-se, conquistam-se, perdem-se, …..) O mesmo se passa com as movimentações e massas Humanas (desde o seu berço (Africa)) sempre para Norte, fugidos, transportados como escravos, expulsos, encurralados e outros factores e razões plausíveis).
    Mas sim. Esta história tem 100 anos, um passado muito recente (Não vamos muito para trás. Pois perdemo-nos nas imensas histórias parecidas). Esquecemo-nos da aglutinação de Union Kingdon, do sofrimento muito recente dos irlandeses ( https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46540382 “Por que é que as fronteiras são um tema sensível? O acordo de paz de 1998 que pôs fim a três décadas de sangrentos conflitos entre a República da Irlanda (país independente e membro da UE) e a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) contempla a ausência de barreiras físicas entre os dois lados) . Espanha unida, quantos anos tem? Itália a união das chamadas Cidades Estados/ Republicas. E a restante Europa. Não acaba por aqui. Lembrem-se disto.
    De qualquer forma esta Europa Velha centro nevrálgico das sucessões, além continente (dizimou nativos nas américas e africas e asia, pôs e dispôs, guerras mundiais. Esta Europa tenta a todo o custo evitar conflito no seu seio (França, Alemanha, Inglaterra, Itália, restantes são compadrio). É na realidade uma Civilização com um peso elevado e estatuto de conhecimento através dos seus erros.
    Mas sim, tem aqui um Culpado. Inglaterra e não Só. E depois criam-se instituições internacionais (são as “marionetes”) para apaziguar estes conflitos.

  7. Não, Nina

    apesar da decisão da ONU não ter sido justa por esse prisma que menciona houve outros factores que levaram a essa decisão (esta divisão foi a segunda, a primeira dava mais território aos arabes e ainda assim foi recusada pelos próprios) portanto não é uma questão de justiça por detrás desta recusa de acatar a decisão da ONU e sim ideologias.
    Isto é uma guerra que ninguém nesta fase tem razão mas a verdade é que a paz naquela zona passa pelos países arabes cederem e aceitarem um estado de Israel e NEGOCIAREM as condições em vez desta “birra ideologica/religiosa/histórica”.
    Na prática, o território é para ser partilhado

  8. Tudo que nasce torto… na minha opinião a vítima desta embrulhada é o povo da Palestina! A única razão pela qual não têm nenhum apoio da comunidade internacional é simples: não têm riqueza, não têm poder! Quanto a israel, não vão descansar enquanto não exterminarem este povo! O genocídio está bem patente nas palavras dos políticos de israel!

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