A empresa estatal russa desenvolveu relações próximas com figuras políticas de vários partidos e empresas com o objectivo de reforçar a venda de gás para a Alemanha.
Ainda antes do início da guerra na Ucrânia, muito foi escrito sobre a relutância da Alemanha em juntar-se aos parceiros ocidentais na imposição de sanções pesadas à Rússia e na venda de armamento a Kiev.
Esta hesitação tem uma explicação óbvia — a dependência da Alemanha do gás russo que circulava no gasoduto Nord Stream. Se Berlim adoptasse uma postura demasiado dura contra Moscovo, arriscava ficar em graves sarilhos se a Rússia decidisse cortar o fornecimento energético.
O país acabou por se juntar à onda de sanções e ao apoio à Ucrânia e até suspendeu as obras para o Nord Stream II. Mesmo assim, isso não lhe poupou as acusações de ser um “cavalo de Tróia da Rússia” na Europa — e uma nova investigação desvenda a verdadeira dimensão da teia de influências russas na política alemã.
O consórcio de jornalistas Correctiv debruçou-se sobre este tema e descobriu que os preços mais baratos não foram a única razão para os laços estreitos entre a Alemanha e a Gazprom, a empresa energética estatal russa.
Justus von Daniels, o director do consórcio, esteve esta quinta-feira na Comissão Especial sobre Ingerência Estrangeira em Todos os Processos Democráticos na União Europeia no Parlamento a adiantar mais detalhes sobre o poder do lobby.
A influência da Gazprom assenta “na criação de uma rede de poder em que há expectativa de benefícios, informação privilegiada, de ajuda para se conseguir manter no poder, há uma proximidade que deixa as pessoas amarradas“, afirma.
O antigo chanceler Gerhard Schröder é muitas vezes visto como o cérebro do lobby do gás russo, mas a rede ia muito além dele e tinha um “envolvimento profundo” com outros políticos e empresas.
O consórcio descobriu que o lobby operava maioritariamente a partir de dois estados, Saxónia e Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, e esta escolha não foi por acaso, já que ambos foram pontos estratégicos para a entrada dos gasodutos.
No meio da teia, duas palavras repetiam-se várias vezes: germano-russo. Os jornalistas encontraram associações como a Conferência Germano-Russa para Matérias-Primas, o Fórum Germano-Russo para Matérias-Primas ou a Parceria Germano-Russa para Matérias-Primas.
“Não é coincidência e a confusão é desejável. Na verdade, as mesmas pessoas e políticos encontravam-se repetidamente, os discursos e a mensagem eram os mesmos: a cooperação em termos de recursos naturais com a Rússia tem de aumentar”, refere Justus von Daniels.
Muitas destas associações deixaram de existir após o início da guerra. A investigação nota que os encontros onde debatiam as relações bilaterais entre Moscovo e Berlim eram feitos durante o dia, enquanto que as noites eram passadas em festas em hotéis de luxo ou castelos.
Lobby atravessava linhas partidárias
O lobby também não se limitava a um partido e tanto membros do partido de direita União Social Cristã (CSU, partido corresponde à CDU na Baviera) como dos esquerdistas do Partido Social Democrata (SPD) tinham ligações à empresa russa. Edmund Stoiber, antigo líder da CSU, Sigmar Gabriel, que foi Ministro da Economia enquanto membro do SPD, são exemplos disto.
Gabriel teve um papel importante na aprovação do acordo que, em 2015, passou a gestão da empresa de armazenamento de gás Peissen para a Gazprom, uma decisão que foi tomada sem com a população a não ser consultada.
O chefe do governo do estado da Saxónia, Michael Kretschmer, também era um dos rostos mais importantes do lobby. A VNG, uma empresa sediada no estado, é um dos principais elos de ligação e teve até de receber um resgate público devido à sua enorme dependência do gás russo, que agora está a ser boicotado. A firma patrocinou vários eventos da CDU e deu contribuições ao partido.
Gabriel e Kretschmer acabaram por agradecer o apoio dos russos ao defenderem o fim das sanções impostas à Rússia na sequência da anexação da Crimeia em 2014. Outras figuras políticas com menos poder, como os membros do SPD Manuela Schwesig, líder de Governo de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental ou Heino Wiese, ex-deputad, também são nomes envolvidos no lobby.
Merkel não se arrepende de reforçar a dependência da Rússia
Um nome que ainda não foi referido é o de Angela Merkel, que durante grande parte do período desta rede de influências foi a chanceler alemã.
Na conferência de imprensa após receber o Prémio Gulbenkian para a Humanidade, a ex-chanceler disse não estar arrependida de ter tornado a Alemanha mais dependente da Rússia, afirmando que na altura esta lhe pareceu uma decisão acertada em termos de sustentabilidade orçamental.
“Não estou arrependida. Agimos de acordo com o tempo que vivíamos. Nessa altura, era claro que haveria uma alteração de todo o abastecimento energético. Estávamos a abandonar a energia nuclear e queríamos abandonar a energia de carvão. E, para isso, precisávamos do gás russo”.
Angela Merkel foi responsável pelo aumento substancial de aquisição de gás russo, através dos gasodutos Nord Stream 1 e 2, apesar dos alertas do Governo norte-americano sobre os riscos de a Alemanha e a Europa ficarem excessivamente dependente da energia controlada pelo Kremlin.
“Por uma opção constitucional, determinámos que a Alemanha deveria chegar à neutralidade climática em 2040. Para conseguir esse objetivo, era indispensável recorrer ao gás asiático. Não tínhamos outras opções”, disse a ex-chanceler.
Pois agora já se percebeu o “Não tínhamos outras opções” da merkel e o “não estar arrependida”, claro que não deve estar!