O testemunho explosivo de Cassidy Hutchinson alimentou a hipótese de Donald Trump vir a ser acusado formalmente pelo Departamento de Justiça de ser responsável pelo ataque ao Capitólio.
O comité do Congresso dos Estados Unidos que investigou o assalto ao Capitólio está a ponderar recomendar ao Departamento de Justiça que Donald Trump seja acusado criminalmente pela insurreição de 6 de Janeiro de 2021, o que pode potencialmente impedi-lo de se recandidatar à presidência em 2024.
“Um homem tão perigoso como ele nunca mais deverá estar perto da Sala Oval”, afirmou Liz Cheney, vice-presidente da comissão, numa entrevista à ABC onde realça que a acusação pode avançar mesmo que o comité não faça a recomendação.
A congressista republicana admite que seria “difícil” ver um ex-Presidente ser alvo de acusações criminais — algo sem precedentes na história dos EUA —, mas sublinha que não o fazer representa uma “ameaça constitucional muito mais grave”.
Cheney também elogiou o testemunho de Cassidy Hutchinson, ex-assessora da Casa Branca que revelou que Trump foi agressivo com os agentes dos Serviços Secretos, sabia que os seus apoiantes estavam armados e que mesmo assim os encorajou a marchar até ao Capitólio e que terá inclusivamente tentado controlar o volante do carro onde seguia depois de o motorista se ter recusado a levá-lo para o local.
“Ela é uma jovem mulher incrivelmente corajosa”, afirma Cheney, que garante que o “comité tem provas significativas” sobre várias das acusações feitas pelas testemunhas nas audiências, incluindo sobre a “raiva intensa” de Trump.
Num comunicado, os Serviços Secretos adiantam que os agentes estão dispostos a testemunhar sob juramento ao painel e uma fonte negou à ABC que Trump tenha tentado assumir o controlo do volante do carro.
O ex-Presidente também tem tentado descredibilizar o testemunho de Hutchinson. “Eu mal sei quem é essa pessoa, apenas ouvi coisas muito más sobre ela, é uma falsa e só traz más notícias”, disse Trump na sua rede social, Truth Social.
Cheney também revelou nas audiências na semana passada que algumas testemunhas tinham dito ao painel que os assessores de Trump tentaram influenciar os seus testemunhos. A interferência e pressão sobre testemunhas é um crime e a congressista não descarta recomendar uma acusação contra Trump nestas bases.
“Não há dúvidas de que ele participou em altos crimes e delitos. Acho que não há dúvidas de que esta foi a maior traição ao juramento de qualquer Presidente na história da nação”, remata Cheney.
Testemunho de Hutchinson pode tramar Trump
As declarações de Hutchinson podem mesmo ser o ponto de viragem que pode desencadear uma acusação criminal formal contra Donald Trump, isto depois de Bennie Thompson, líder do comité que investiga o ataque, ter dito que este não ia fazer a recomendação ao Departamento de Justiça.
A ex-assessora de Mark Meadows, na altura o chefe de gabinete de Trump, disse ter ouvido as palavras “Oath Keeper” e “Proud Boys” quando Rudy Giuliani, o advogado do então chefe de Estado, estava presente durante o planeamento do comício de 6 de Janeiro — o que aumenta as ligações entre a Casa Branca e estas organizações extremistas de direita, cujos membros estão entre os 870 acusados de vários crimes decorrentes do ataque ao Capitólio.
De acordo com David French, autor do livro Divided We Fall: America’s Secession Threat and How to Restore Our Nation, até agora a probabilidade de Trump ser efectivamente acusado parecia pequena devido à Primeira Emenda da Constituição — que garante a liberdade de expressão mesmo quando o discurso incita à violência e que protege o ex-Presidente de ser responsabilizado por acções que foram levadas a cabo por terceiros, nomeadamente, os seus apoiantes.
E apesar de Trump ter dito à multidão para “lutar como o inferno“, também apelou aos seus apoiantes que o fizessem “pacificamente a patrioticamente”, pelo que esta segunda parte do discurso pode bastar para que não haja base para uma acusação.
No entanto, French acredita que o testemunho de Hutchinson pode ter deitado esta teoria por água abaixo especificamente por causa destas palavras — “Sabem, eu não me interesso que eles tenham armas. Eles não estão aqui para me magoar. Deixem as minhas pessoas entrar. Eles podem marchar para o Capitólio a partir daqui”, terá dito Trump, de acordo com a ex-assessora.
Estas palavras podem ser a chave de toda a acusação. “Para se perceber porquê, temos de voltar a 1969 e ao caso seminal do Supremo chamado Brandenburg v. Ohio. O Supremo reviu uma condenação criminal contra um líder do Ku Klux Klan por “advogar o dever, a necessidade ou a propriedade de crimes, sabotagem, violência ou métodos ilegais de terrorismo”, escreve French no The Dispatch.
Na altura, o Supremo reverteu a condenação, alegando que mesmo o discurso que ameace violência ou comportamentos desordeiros estão protegidos pela Constituição a não ser que esses apelos tenham uma alta probabilidade de resultar em acções efectivamente violentas iminentes.
“Nota para os elementos de intenção, probabilidade e iminência. A iminência é o elemento mais fácil de se provar — a multidão estava lá e marchou imediatamente para o Capitólio, mesmo enquanto Trump estava a discursar”, explica French.
O especialista acrescenta que os outros elementos podem ser provados já que Trump sabia que os apoiantes estavam armados e que os incitou a “lutar como o inferno” e também inflamou a situação no Twitter, especificamente contra Mike Pence, o seu vice-presidente que recusou participar no golpe.
A credibilidade do Departamento de Justiça
Um obstáculo à acusação é o receio do Departamento de Justiça de Biden de que as linhas que separam a política da justiça sejam cruzadas e que uma acusação a Trump ponha em causa a imagem de imparcialidade dos responsáveis, especialmente do procurador-geral Merrick Garland.
No início de Junho houve também um pequeno arrufo entre o Congresso e o Departamento de Justiça, com os responsáveis do segundo a enviarem uma carta ao comité onde o criticam por não partilharem as transcrições das mais de mil entrevistas que levou a cabo, o que “complica a investigação“.
As investigações paralelas entre os dois órgãos também deixam a nu as diferenças nos processos e nos objectivos. Do lado do Congresso, o objectivo é claramente político, com a intenção de informar o público e o tentar persuadir a responsabilizar Trump pelos acontecimentos de 6 de Janeiro.
No entanto, os procuradores do Departamento de Justiça já têm de ser mais contidos e têm de evitar comentar publicamente as investigações para não poderem ser acusados de difamação.
David Rhode escreve na The New Yorker que ambas as equipas já erraram na abordagem. “As apresentações do comité da Câmara dos Representantes muitas vezes dão a ideia ao público que garantir uma condenação seria simples” quando este já sobreviveu a dois processos de destituição e a vários inquéritos parlamentares, enquanto que o Departamento focou-se inicialmente em “infratores de baixo nível” e evitou investigar logo Trump numa tentativa de parecer imparcial.
Um ex-procuradora federal David Laufman deixa avisos sobre os riscos da sede de justiça: “Entendo o desejo de responsabilizar criminalmente Trump sobre a sua conduta, mas é completamente inapropriado para o Departamento de Justiça permitir que considerações políticas influenciem a sua decisão sobre acusar ou não alguém. Têm de aplicar os mesmos critérios neste caso como em qualquer outro”.