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Da justiça popular online ao voyeurismo com celebridades. O caso Depp vs. Heard pinta um retrato negro dos nossos tempos

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ZAP // Jonathan Ernst / POOL / EPA

Desde a obsessão com as vidas privadas dos famosos até à transformação de acusações graves de violência em meros memes, a atenção dada ao julgamento de Johnny Depp e Amber Heard deixa a nu várias tendências preocupantes.

Foi a 11 de Abril que arrancou o julgamento que pôs o ex-casal de actores Johnny Depp e Amber Heard frente a frente em tribunal — e desde então que o caso é um dos temas do momento.

A acção foi aberta por Depp, que acusa Heard de o ter difamado quando escreveu um artigo de opinião no The Washington Post em 2018 onde afirmava que tinha sido vítima de violência doméstica.

A defesa de Depp alega que as acusações da ex-mulher arruinaram a sua reputação e a sua carreira, e que levaram a que perdesse o papel de Jack Sparrow na saga dos Piratas das Caraíbas, e exige uma indemnização de 50 milhões de dólares.

Já Heard, por sua vez, contestou o processo e quer uma compensação de 100 milhões, considerando que os advogados de Depp a difamaram quando descreveram os seus relatos dos alegados abusos cometidos pelo ex-marido como uma “farsa”.

A “memeficação” da violência doméstica

Tendo dois protagonistas com um perfil público e a natureza das acusações, era expectável que o caso atraísse alguma atenção mediática. Mas a verdade é que o tema está até a sobrepor-se a algumas questões políticas: uma análise aos assuntos mais populares nas redes sociais concluiu que os americanos se interessam mais por esta batalha legal do que pelo aborto, pela inflação ou pela guerra na Ucrânia.

A transmissão televisiva do julgamento é a lenha que alimenta todo este fascínio, com os vídeos das alegações em tribunal a angariarem milhões de visualizações nas redes socias — parecendo quase um episódio de Black Mirror.

Só no TikTok, os vídeos com as hashtags #justiceforjohnnydepp, #deppvsheard ou #amberturd angariaram até agora, respectivamente, 16.4, 2.8 e 3.4 mil milhões de visualizações. Já no YouTube, há transmissões em directo do julgamento em canais de jornais mainstream que colam centenas de milhares de pessoas ao ecrã.

O problema não reside no interesse do público no caso, mas antes na forma como este tem sido comentado. Muitas são as edições feitas dos depoimentos — como as alegações de Heard de que Depp a violou com uma garrafa ou a acusação de Depp de que Heard lhe cortou um dedo e apagou um cigarro no seu rosto — que reduzem os relatos de situações violentas a memes com zooms cómicos, emojis e a música da Nintendo Wii a tocar no fundo.

São também inúmeras as imitações cómicas dos protagonistas e das suas equipas legais, assim como as piadas feitas à custa das revelações feitas em tribunal, como a alegação de que Amber defecou na cama de Johnny — que lhe valeu a alcunha Amber Turd (turd significa cocó).

Esta “memeficação” nas redes sociais transforma um caso que podia despoletar uma conversa social séria sobre a violência doméstica numa piada e reduz as confissões profundamente íntimas de Depp e Heard a um mero entretenimento para as massas verem com um balde de pipocas no colo.

A forma leviana como a opinião pública tem encarado o caso é um mau agoiro para as vítimas de abusos, tanto masculinas como femininas. No caso de Heard, a sua descredibilização através das piadas é uma realidade comum a muitas mulheres que acusam homens de violência ou abusos sexuais.

Já para Depp, um caso que podia ser uma oportunidade para quebrar o tabu em torno das vítimas masculinas de violência doméstica é reduzido a mais uma piada na internet, o que impede que se acenda um debate sério sobre o tema.

O lado menos glamouroso da fama

A curiosidade mórbida do público em torno deste caso deixa ainda a nu as tendências mais perversas que nascem da nossa obsessão colectiva com celebridades.

Todos os dias, milhões de pessoas esperam impacientemente para poderem saber mais detalhes sórdidos das vidas íntimas de Depp e Heard, desde as agressões, ao incidente das fezes, passando pelas acusações mútuas de consumo abusivo de álcool e drogas, até a uma suposta ménage à trois da actriz com o bilionário Elon Musk e a modelo Cara Delevigne.

É quase como um voyeurismo à escala global, alimentado pelo facto peculiar deste caso escancarar a porta que separa o que os famosos nos deixam ver daquilo que mantém privado e desvendar os bastidores da fama.

Afinal, por detrás dos holofotes, das grandes e fortunas e da ilusão do glamour de Hollywood, as vidas conjugais das celebridades são tão ou mais tóxicas do que as de muitos outros casais entre os comuns dos mortais — e o fascínio com esta queda do pedestal gera um schadenfreude generalizado num mundo que está cada vez menos interessado em ser leccionado pelas elites (e os políticos que o digam).

Aos olhos do público, Depp já venceu

Um ponto incontornável na discussão sobre este caso é o facto de não haver grandes dúvidas na opinião pública sobre quem tem razão. Uma vista de olhos pelas hashtags mais populares ou pelos comentários em artigos ou vídeos referentes ao julgamento deixam claro que a larga maioria das pessoas acredita em Johnny Depp, seja por causa da linguagem corporal de Heard, por os seus relatos serem vistos como pouco convincentes ou por causa de uma gravação onde admite que bateu no ex-marido.

A famosa “cultura do cancelamento” está agora a estender-se à justiça, com os caprichos voláteis das redes sociais e os likes e as partilhas a substituírem o martelo do juiz, e com a multidão do Twitter, que é notoriamente pouco adepta da nuance, a ser responsável por decidir quem é culpado e inocente.

Por um lado, os defensores de Johnny Depp argumentam que este julgamento é um exemplo das falhas do lema do MeToo de que se deve acreditar sempre a priori nas mulheres e como este dogma pode causar a destruição das carreiras e das vidas dos acusados, que não têm uma oportunidade justa para se defenderem.

Pior do que isto, a existência de falsas acusações planta a semente da dúvida em todas as denúncias, o que cria mais um obstáculo às verdadeiras vítimas.

Já os defensores de Amber Heard acreditam que este obstáculo, na verdade, nunca deixou de existir. Para estes, a actriz é uma vítima de violência e de estereótipos sexistas que, tal como muitas outras, é retratada como uma interesseira que seduziu um homem mais velho e famoso apenas por ambição e que o arruinou com uma falsa acusação quando este já não lhe era útil.

Mas ignorar as complexidades destes casos e diluir tudo a uma narrativa de vilão vs herói é uma especialidade das redes sociais.

Independentemente do desfecho que venha a ser decidido em tribunal após o fim do julgamento esta sexta-feira, o resultado será o mesmo na praça pública — Depp é o herói e Heard é a vilã. E uma coisa é certa: apesar de já acharmos ultrapassadas a tradição arcaica de se atar o criminoso ao pelourinho, este julgamento mostra que a sede pela justiça popular ainda está longe de estar saciada.

Adriana Peixoto, ZAP //

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1 Comment

  1. Tanto o Depp como a Amber Heard vão lucrar com este tipo de publicidade, Ninguém sabia quem ela era e agora já está mundialmente famosa. O Depp também andava um pouco apagado e agora está na ribalta outra vez. Eles dão sempre a volta e lucram com todo o tipo de publicidade. Devem ter agentes muito experientes a trabalhar para eles.

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