Um ano depois da insurreição no Capitólio, as feridas da América ainda estão por sarar

Foi há um ano que um grupo de apoiantes de Donald Trump invadiu o Capitólio numa tentativa de reverter o vitória eleitoral de Joe Biden. O legado da insurreição e das conspirações de fraude eleitoral é agora abraçado pelos membros mainstream do Partido Republicano.

Durante a confirmação da vitória de Joe Biden nas presidenciais de 2020 pelo Congresso, um grupo de apoiantes de Donald Trump que tinha estado horas antes num comício do ex-presidente em Washington, dirigiu-se para o Capitólio e começou a forçar a entrada no edifício, numa tentativa de reverter o resultado da eleição.

Foi já há um ano que tudo aconteceu. De acordo com um relatório bipartidário do Senado, houve sete mortes que estiveram de alguma forma ligadas ao evento. Ashli Babbitt, uma veterana da Força Aérea, que foi atingida por um tiro disparado por agente da polícia quando tentava entrar na Câmara dos Representantes, foi uma das primeiras mortes conhecidas.

Kevin D. Greeson, outro apoiante de Trump, morreu após ter um ataque cardíaco no edifício enquanto que Rosanne Boyland perdeu a vida depois de ser aparentemente esmagada no meio da multidão que estava a enfrentar a polícia, mas o médico que  examinou afirma que a causa da morte foi uma overdose. Já Benjamin Philips, fundador de um site de apoio da Trump, faleceu depois de sofrer um AVC.

Nas dias e semanas seguintes ao ataque, vários agentes da polícia também morreram, como Brian D. Sicknick, que morreu a 7 de Janeiro depois de ser atacado pela multidão. Segundo o exame médico, Sicknick sofreu vários AVCs, mas “tudo o que se passou afectou a sua condição”.

Jeffrey Smith, agente da Polícia Metropolitana, suicidou-se depois da invasão, assim como Howard S. Lienbengood, agente do Capitólio, que também tirou a própria vida  quatro dias depois. O Senado reconheceu em Junho que todas estas mortes estavam ligadas ao evento, mas mais dois polícias que estavam no local – Gunther Hashida e Kyle DeFreytag – também se suicidaram já em Julho.

Os suicídios não são consideradas mortes durante o trabalho, pelo que as famílias não têm direito a nenhum apoio financeiro. Os Representantes e Senadores Democratas da Virgínia estão entretanto a tentar pressionar o autarca de Washington a mudar esta situação.

Cerca de 150 polícias ficaram feridos e muitos ficaram traumatizados e com problemas de saúde mental após o ataque, como relataram no testemunho perante o Congresso.

Mas o legado de 6 de Janeiro de 2021 vai muito além do que se passou no próprio dia e as feridas da democracia norte-americana ainda estão longe de sarar de vez.

Os processos na justiça

Mais de 700 pessoas foram acusadas pelos procuradores federais nos meses que se seguiram ao ataque, revela o NPR, que analisou os dados de todos os casos para traçar um panorama geral da resposta da justiça.

Há suspeitos vindos de 46 estados diferentes, o que mostra que a multidão era oriunda de todos os cantos dos Estados Unidos, e a grande maioria era branca. Os homens dominam, apesar de ainda haver um número significativo de mulheres.

Os atacantes eram também eram relativamente jovens, com pelo menos três quartos dos acusados a terem menos de 55 anos e há ainda 134 pessoas com menos de 30. O perfil socio-económico já é demasiado variado para se generalizar, com muitas profissões à mistura, como pequenos empresários, professores, enfermeiros ou até um director executivo de uma empresa de marketing.

Mais de 187 pessoas, cerca de um quarto dos réus, foram acusadas de crimes violentos, com vários relatos dos polícias presentes que dizem que lutaram fisicamente com muitos dos protestantes, que foram eletrocutados com tasers, agredidos com cassetetes ou atacados com gás-pimenta.

Uma notícia do NPR poucas semanas depois do ataque deu conta de que quase um em cada cinco dos atacantes que tinham sido identificados tinham já integrado o exército ou a polícia — uma proporção três vezes maior à da população em geral.

Com a revelação de mais dados, o valor caiu, mas continua elevado, sendo cerca de 13%. Um relatório de Abril de 2021 do programa sobre extremismo da Universidade George Washington concluiu que a probabilidade dos invasores integrarem grupos violentos de extrema-direita, como os Proud Boys, os Oathkeepers ou os Three Percenters, era quatro vezes maior entre os que tinham um passado militar.

A maioria dos acusados está a aguardar a conclusão do julgamento em casa, mas 76 estão presos, principalmente aqueles que estão acusados de crimes mais graves. Pelo menos 26 foram presos pouco depois do evento, estando há quase um ano na prisão.

Já 74 foram condenados, mas 55% não receberam uma sentença de prisão. A maioria destes casos foi para crimes menores e que não sejam violentos. A pena mais pesada foi de cinco anos de prisão para Robert Scott Palmer, que admitiu ter agredido um polícia com uma placa de madeira e um extintor de incêndio.

O impacto no Partido Republicano

Apesar de ter sido um evento sem precedentes na história dos Estados Unidos, os representantes políticos não se uniram numa mensagem em uníssono contra a violência da extrema-direita e vários Republicanos têm desvalorizado publicamente o que aconteceu a 6 de Janeiro.

Andrew Clyde, um congressista do partido, chegou a comparar a invasão com uma visita turística normal, apesar das imagens o mostrarem a barricar-se na galeria da Câmara dos Representantes no mesmo dia. Para o cientista político Cas Mudde, Clyde é um exemplar da história do Partido Republicano em 2021.

“Clyde simboliza um partido que teve a oportunidade de se afastar do caminho anti-democrático que seguiu com Donald Trump, mas que foi demasiado fraco na ideologia e na liderança para o fazer, sendo assim uma ameaça fundamental à democracia nos EUA em 2022 e no futuro”, escreve no The Guardian.

Mas Clyde está longe de ser um caso único. Vários políticos do partido, como os Senadores Josh Hawley, Ted Cruz e Ron Johnson e o líder da minoria Republicana na Câmara dos Representantes, Kevin McCarthy, ajudaram a propagar as acusações de Trump de que a eleição foi fraudulenta.

Outros, como o empresário Bernie Moreno, que inicialmente felicitou Biden pela vitória e encorajou os seus “amigos conservadores” a aceitar o resultado apesar de acreditar que houve algum tipo de fraude, mudaram depois de tom. “O Presidente Trump diz que a eleição foi roubada e ele tem razão“, diz agora Moreno num anúncio da sua campanha para as primárias no Senado estadual do Ohio.

Se já desde a campanha de Donald Trump em 2016 que um grupo de Republicanos se opôs firmemente às suas políticas, conhecidos como Never Trumpers, a verdade é que, com o passar do tempo, o partido rendeu-se à popularidade do ex-Presidente na base, especialmente quando antigos aliados próximos de Trump, como o seu vice-presidente Mike Pence ou o Senador Mitch McConnell, foram alvos de ameaças por não o apoiarem incondicionalmente.

O chumbo da segunda proposta de destituição, já depois de Joe Biden ter assumido a presidência foi talvez o momento que consolidou definitivamente a realidade — o Partido Republicano é agora o partido de Donald Trump.

Pelo menos 163 Republicanos que abraçaram as conspirações sobre a fraude nas presidenciais estão a concorrer para cargos estaduais que lhes dão autoridade sobre a administração de eleições, revela o Washington Post, sendo que pelo menos cinco estavam até presentes no motim de 6 de Janeiro.

O impacto da propagação a nível mainstream das conspirações sobre a fraude eleitoral estão também a levar a que os estados aprovem leis que dificultam mais o processo de voto. De acordo com o Brennan Center for Justice foram introduzidas 440 leis com provisões que restringem o acesso ao voto em 49 dos 50 estados norte-americanos, o número mais alto desde que o centro começou a contagem.

“A conclusão generalizada no estrangeiro é de que um ano depois do ataque no Capitólio, algo permanece partido na democracia da América. O legado de 6 de Janeiro pode ser menor como um evento isolado do que como um ponto de inflexão na narrativa geral de que os Estados Unidos são uma casa dividida, incapaz de chegar a um consenso e com os seus pilares da democracia e do alcance global enfraquecidos irrevogalmente”, remata o Washington Post.

As conspirações que ainda persistem

Várias das conspirações que foram propagadas continuam a persistir, apesar de não haver provas de que sejam verdade.

Uma das mais conhecidas é que o ataque não foi propagado por apoiantes de Trump, mas sim por protestantes do movimento Black Lives Matter ou ANTIFA (um termo que se aplica a vários pequenos grupos anti-fascistas). Na verdade, nenhum dos mais de 729 acusados tem qualquer ligação a um grupo ANTIFA.

Outra teoria era de que teria sido o FBI a organizar o ataque ou de que a presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, teria ignorado os pedidos de reforços da polícia do Capitólio, tendo esta última sido propagada por alguns legisladores Republicanos. Nada aponta para que nenhuma destas conspirações sejam verdade.

Adriana Peixoto, ZAP //

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