Milhares de mulheres indianas que trabalham em plantações de cana de açúcar sujeitam-se, todos os anos, a histerectomias abusivas, ficando sem útero, num ciclo vicioso que é alimentado pelos capatazes que as empregam e que complica ainda mais as suas já difíceis condições de vida.
As estatísticas oficiais indicam que, entre 2016 e 2019, 4.605 mulheres foram sujeitas a histerectomias em 99 clínicas privadas do distrito de Beed, no estado de Maharashtra, no centro-oeste da Índia. Mas as organizações não governamentais que actuam na zona referem que os números reais são 14 vezes superiores.
A maioria destas mulheres tem entre 35 e 40 anos, mas algumas têm menos de 25 anos. Chamadas de “meninas do açúcar”, estas trabalhadoras sem voz, nem direitos, acabam a remover o útero coagidas por médicos que, muitas vezes, lhes apresentam diagnósticos errados.
Em muitos casos, são os capatazes que as empregam nas plantações que lhes emprestam o dinheiro para as cirurgias em clínicas privadas, pois estão interessados em que elas trabalhem o mais possível, sem os inconvenientes da menstruação ou da gravidez. Além disso, cobram-lhes juros exorbitantes.
Estas mulheres acabam, assim, a entrar num ciclo vicioso de dívidas e de problemas de saúde, já que, em alguns casos, as operações são mal feitas e implicam complicações que lhes limitam a vida, nomeadamente devido a dores.
A realidade existe há várias décadas na Índia, mas no silêncio das comunidades. Contudo, um jornal local indiano resolveu dar eco ao assunto e o Governo criou uma Comissão Parlamentar em 2019, para se debruçar sobre o problema. Activistas feministas e ONGs consideram que foi mera fumaça, sem qualquer acção efectiva.
As “meninas do açúcar” estão, agora, a receber visibilidade mundial, graças à fotojornalista francesa Chloe Sharrock que retratou esta realidade na sua exposição “Sugar Girls” que integrou o prestigiado festival Perpignan Visa Pour l’Image.
Chloe Sharrock recolheu testemunhos de várias mulheres e mostrou as suas ecografias a um médico francês que lhe assegurou que “não havia nada de anormal” com os úteros que lhes foram removidos.
“Os médicos do sector privado fazem pressão sobre estas mulheres ainda jovens para que elas sejam operadas e gerem lucros”, salienta a fotojornalista em declarações ao canal francês TV5 Monde.
Elas acreditam que as operações lhes vão melhorar a vida durante o trabalho nas plantações, sobretudo por ficarem sem menstruação.
“As viagens são difíceis, em camiões debaixo de sol, e as condições de vida são rudimentares, sobre terra seca, em barracas básicas, sem instalações sanitárias“, nota Chloe Sharrock.
Têm de usar panos à falta de pensos higiénicos e ainda são vítimas de violência doméstica e laboral.
“Em geral analfabetas, estas mulheres não conhecem o próprio corpo num país onde a intimidade é tabu. Então, acreditam cegamente nas palavras dos médicos e deixam-se operar, pensam que não têm escolha”, sustenta ainda a fotojornalista, frisando que “na Índia, não se fala de menstruação, de sexualidade, nem do que está ligado à vida reprodutiva”.
“Para optimizar a produtividade, os gerentes das plantações encorajam-nas e avançam-lhes o dinheiro com juros astronómicos“, acrescenta Chloe Sharrock.
Pagam entre 20 mil a 50 mil rupias (cerca de 220 a 560 euros) pelas cirurgias, o que constitui uma fortuna para trabalhadoras que ganham cerca de 30 mil rupias (à roda de 335 euros) por toda uma temporada de trabalho nas plantações.
A fotojornalista dá o exemplo de Asha, de 29 anos, que se casou com apenas 12 anos e que foi mãe aos 14. Após a cirurgia de remoção do útero sofreu complicações e “não pôde voltar ao trabalho”, mas “deve quantias enormes” ao seu capataz que lhe emprestou o dinheiro para a operação, revela Chloe Sharrock.
Indianas não bebem água com medo de serem violadas
Sem facturas das operações ou sequer registos médicos que documentem os seus alegados problemas, que não são fornecidos pelos médicos que as operam, não têm como pedir ajuda, nem tão pouco uma compensação pelos danos causados pelas cirurgias abusivas.
“Muitas delas nem se dão conta de que são vítimas de abuso“, realça Chloe Sharrock.
Estas mulheres enfrentam jornadas de trabalho de entre 12 a 16 horas e “não têm Segurança Social para pararem se estiverem doentes ou grávidas”, “nenhuma legislação, nenhum sindicato” as defende, constata ainda a fotógrafa.
Casadas desde muito jovens, elas “encadeiam as maternidades” e “não podem repousar”, mesmo quando estão doentes, porque são multadas em 500 rupias (quase 6 euros) se falharem um dia de trabalho, sustenta ainda Chloe Sharrock na TV5 Monde.
“Invisíveis” perante a lei
Um relatório recente da Human Rights Watch (HRW) alerta que as mulheres indianas que trabalham sem contrato, o que constitui 95% das trabalhadoras do país, são vítimas de abusos vários, entre os quais sexuais.
A HRW considera que grande parte das trabalhadoras indianas são “invisíveis” perante a lei, sobretudo em sectores como as fábricas, a agricultura e os trabalhos domésticos, onde “são assediadas e agredidas sexualmente todos os dias“.
Mas “a pobreza não lhes deixa escolha, elas sabem que qualquer ganho que consigam é muito mais importante”, explica a advogada Rebecca John, conforme cita a HRW no seu relatório.
A entidade salienta que estas mulheres resistem a denunciar os abusos que sofrem por se sentirem limitadas “pelo estigma, medo de retribuição e barreiras institucionais à justiça”.
Um relatório divulgado pela Fundação Thomson Reuters considerou que a Índia é o país mais perigoso do mundo para as mulheres, devido ao elevado risco de sofrerem violência sexual e trabalho escravo.
Em Portugal (o)as obstetras também são trigger-happy na remoção de úteros e trompas, numa ganância sem par. Por isso não trabalham nos hospitais públicos.
Parece que a ganância do ganho não tem limites.
Há momentos em que preferia ser cão.
De facto é repugnante, em pleno século 21, isto acontecer. Mais ainda, o silêncio das organizações Mundiais.
Chun-Li. You wrote the best.