Em abril de 1997, uma mulher vestida com uniforme de enfermeira saiu de um hospital da Cidade do Cabo, na África do Sul, com um bebé de três dias, enquanto a mãe deste dormia. Por obra do acaso, 17 anos depois, a criança sequestrada descobriu a sua verdadeira identidade.
Segundo noticiou a BBC Brasil, era o primeiro dia de aula na Zwaanswyk High School, na Cidade do Cabo, e Miché Solomon, a jovem em causa, começava o que seria o seu último ano na escola. Logo que chegou à escola, os seus colegas vieram lhe falar de uma nova aluna, Cassidy Nurse, três anos mais jovem, que eram praticamente idênticas.
Miché Solomon não deu muita atenção aos comentários, mas tudo mudou quando cruzou com Cassidy Nurse mais tarde no corredor. A jovem disse ter sentido uma conexão instantânea inexplicável. “Quase senti que a conhecia. Foi tão assustador, não conseguia entender por que estava me sentindo daquela forma”, revelou.
Apesar da diferença de idade, as duas jovens começaram a passar muito tempo juntas. Quando alguém perguntava se eram irmãs, as duas brincavam: “Não sabemos – talvez noutra vida!”.
Certo dia, as duas garotas tiraram uma ‘selfie’ juntas e mostraram para as amigas. Algumas pessoas perguntaram a Miché Solomon se ela tinha certeza de que não havia sido adotada. “Não! Que loucura!”, dizia.
Miché Solomon e Cassidy Nurse foram para casa e também mostraram a foto para suas famílias. Lavona, a mãe de Miché, comentou sobre a semelhança entre ambas. Michael, o pai, disse que reconheceu a nova amiga da sua filha – o pai de Cassidy tinha uma loja de eletrodomésticos onde este às vezes fazia compras.
Mas os pais de Cassidy, Celeste e Morne Nurse, tiveram outra reação. Disseram a Cassidy que tinham uma pergunta para Miché, e quando as duas garotas voltaram a se encontrar, Cassidy finalmente questionou: “Nasceste em 30 de abril de 1997?”. A resposta de Miché foi afirmativa.
Semanas depois, Miché foi convocada para a sala do diretor da escola, onde duas assistentes sociais a esperavam. Foi quando ouviu pela primeira vez a história de uma menina de três dias, chamada Zephany Nurse, sequestrada no Hospital Groote Schuur, na Cidade do Cabo, há 17 anos, que nunca fora encontrada. As assistentes sociais explicaram que havia fortes evidências de que ela poderia ser a criança sequestrada.
Na tentativa de esclarecer o que considerava um mal-entendido, Miché explicou que não havia nascido no Hospital Groote Schuur e sim no Hospital Retreat. Era o que estava escrito na sua certidão de nascimento. No entanto, as assistentes sociais indicaram que não havia registo do seu nascimento nesse local.
Apesar de acreditar que tudo não passava de uma grande confusão, Miché concordou em fazer um teste de ADN. “Acreditava muito na mãe que me criou – ela nunca mentiria para mim, principalmente sobre quem eu sou e de onde eu venho”, disse Miché. “Eu tinha certeza de que o teste daria negativo”.
Mas, para a sua surpresa, os resultados confirmaram as suspeitas: Miché Solomon e Zephany Nurse, o bebé roubado do Hospital Groote Schuur em 1997, eram a mesma pessoa. “Fiquei em estado de choque”, contou. “A minha vida ficou de cabeça para baixo”.
A história do bebé roubado, agora uma jovem, encontrada quase por acaso quase duas décadas depois, foi destaque nos noticiários da África do Sul. A partir daí, a sua Miché mudou completamente.
As autoridades disseram que Miché não poderia voltar para casa – em três meses, completaria 18 anos e poderia tomar as suas próprias decisões. Mas, naquele momento, tinha que ficar numa casa segura. Entretanto, Lavona Solomon, a mulher que acreditava ser sua mãe, havia sido presa.
Miché estava presente quando o marido de Lavona, Michael – o homem que esta considerava seu pai – foi interrogado pela polícia. “Pude ver a tensão no seu rosto, pude ver seus olhos cheios de sangue e fiquei com muito medo”, indicou.
“O meu pai é um homem tranquilo e gentil”, declarou Miché. “Mas ele é a minha rocha, o meu herói,o meu pai, o meu exemplo. E aquele agente da polícia o fazia parecer o contrário de tudo o que sempre imaginei. Meu pai dizia: ‘Não, eu não fiz isso. Miché é minha filha – como ela pode não ser minha filha? Eu não participei disso'”.
A polícia nunca encontrou provas de que Michael soubesse que Miché fora tirada dos seus pais biológicos, e acabou libertado. Em sua defesa, alegou que Lavona estava grávida de Miché. Contudo, as autoridades acreditam que Lavona tenha sofrido um aborto espontâneo. Então, teria roubado a menina e fingido que havia dado à luz a ela.
Lavona acabou detida, acusada de sequestro e falsidade ideológica. O seu julgamento ocorreria nos meses seguintes.
Embora Celeste e Morne Nurse tenham tido mais três filhos, nunca pararam de procurar a sua primeira filha, Zephany, e comemoravam o seu aniversário todos os anos – mesmo depois de se divorciarem.
No entanto, durante todo esse tempo, a sua filha crescia por perto. A casa dos Solomons fica a apenas cinco quilómetros da dos Nurses. Quando criança, Miché corria pelo campo em frente à casa dos pais biológicos, enquanto Michael jogava futebol.
Após 17 anos, Miché se reuniu com os pais biológicos numa esquadra da polícia rodeada por assistentes sociais. “Eles me abraçaram, me apertaram e começaram a chorar”, contou, acrescentando que não se sentia confortável.
“Fiquei a pensar: ‘Tenho que entender o sofrimento dessas pessoas. É triste, mas não sentia nada, não senti falta deles todo esse tempo”, afirmou.
O julgamento de Lavona Solomon no tribunal superior da Cidade do Cabo começou em agosto de 2015. Tanto Miché quanto os seus pais biológicos estavam presentes para ouvir o testemunho de Lavona.
Durante o julgamento, esta negou ter cometido o crime. Falou sobre a vontade de ser mãe, os abortos espontâneos e o desespero em adotar um filho. Disse que recebeu Miché de uma mulher chamada Sylvia, que estava a fazer um tratamento de fertilidade. Sylvia teria dito a Lavona que o bebé pertencia a uma jovem que não estava interessada em mantê-lo e queria que este fosse adotado. Mas não havia evidências da existência de Sylvia.
Além disso, quase duas décadas após o incidente, uma testemunha identificou Lavona como a mulher que viu vestida de enfermeira levando Zephany do hospital enquanto Celeste dormia. O tribunal concluiu que Lavona era culpada. Em 2016, foi condenada a 10 anos de prisão por sequestro, fraude e violação do Estatuto das Crianças.
Foi também criticada pelo juiz por não demonstrar remorso durante o julgamento.
“Senti como se tivesse morrido”, relatou Miché. “Pensava comigo mesma: ‘Como vou lidar com isso? Como vou passar a vida sem a mãe que tive todos os dias da minha vida?'”.
Alguns meses depois, Miché visitou Lavona na prisão e pôde falar com ela pela primeira vez desde que recebeu a visita das assistentes sociais na sua escola. “Quando a vi pela primeira vez, um vidro nos separava. Não pude tocá-la. Vi a minha mãe com uniforme de prisioneira e isso partiu o meu coração. Chorei sem parar”, disse.
“Saber que não sou do teu sangue – que realmente vim de outra pessoa, e que tu lhes roubaste da possibilidade de me criar, mudando todo o meu destino – me magoa. Como posso acreditar na tua palavra quando me mentiste, dizendo que sou tua filha? Quebraste a minha confiança. Tens de me contar a verdade se quiseres me continuar a ver”, disse Miché à Lavona nesse dia.
Lavona terá respondido que um dia contaria a verdade a Miché, mas que não a sequestrou.
Miché, porém, afirmou que não guarda rancor. “Perdoar traz tanta cura para o coração. A vida deve continuar. Ela sabe que eu a perdoo, e ela sabe que eu ainda a amo”.
Já se passaram mais de quatro anos desde que Miché descobriu a verdade sobre a sua identidade. Quando completou 18 anos, no final de abril de 2015, chegou a considerar morar com um dos seus pais biológicos, mas mudou de ideia.
“Os meus pais biológicos divorciaram-se. Então, tomei a decisão óbvia e a mais que me traria maior estabilidade – voltar a morar com Michael, que era o meu espaço seguro, que a era minha casa”, contou.
Miché teve dificuldades para construir um relacionamento com a sua família biológica e confessa que às vezes sentia que os odiava por terem levar a sua “mãe” embora.
Ainda visita Lavona na prisão em Worcester, a cerca de 120 quilómetros de onde vive, mas é uma longa viagem, especialmente agora que tem dois filhos. Lavona será libertada em seis anos e Miché, que ainda mora na casa da família, espera a mãe voltar.
Miché Solomon escolheu manter o nome com o qual foi criada, e não com o que recebeu quando nasceu. Mas, de alguma forma, apesar da montanha-russa psicológica ao descobrir que a mulher que a criou realmente a roubou, fez as pazes com ambas as identidades.
“Acho que odiei Zephany no começo. Ela veio com tanta força, um convite tão indesejado, trazendo tanto sofrimento e tanta dor. Mas Zephany é a verdade e Miché, a menina de 17 anos que eu era, era uma mentira. Então consegui equilibrar os dois nomes. Podem me chamar de Zephany ou Miché, tudo bem”.
A história de Miché é contada no livro Zephany: Two mothers. One daughter (Zephany: Duas Mães. Uma filha, em tradução livre), de Joanne Jowell.