Há línguas transparentes e línguas opacas. Qual é a diferença?

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American Heritage Schools

Imagine o seguinte: uma noite, está num bar de karaoke em Helsínquia e alguém o incentiva a levantar-se e a cantar uma canção bem conhecida em finlandês.

Sem saber uma palavra da língua, pega no microfone e, para sua surpresa, consegue seguir o ritmo da letra que aparece no ecrã, sem fazer ideia do que está realmente a dizer.

Os fãs da Eurovisão podem experimentar esta experiência com o êxito finlandês de 2023 de Käärijä, “Cha Cha Cha“.

Mas porque é que isto é possível? O segredo está na “transparência” do finlandês e de muitas outras línguas.

A transparência de uma língua refere-se à relação entre as suas letras (conhecidas como “grafemas”) e os seus sons (“fonemas”). Numa língua transparente, cada grafema representa normalmente um fonema de forma consistente e previsível.

Exemplos clássicos de línguas transparentes são o espanhol, o italiano, o alemão, o basco, o turco e o finlandês.

Muitas outras línguas não se enquadram nesta categoria e são definidas como opacas. Nas línguas opacas, a relação entre grafemas e fonemas é muito menos previsível, o que significa que a pronúncia de uma determinada sequência de letras nem sempre segue um padrão consistente.

O inglês é um bom exemplo: palavras como “pint” e “mint” constituem um verdadeiro desafio para os novos aprendentes – apesar de partilharem a mesma ortografia, cada uma é pronunciada de uma forma diferente.

Pelo meio, há ainda línguas cuja classificação não é tão clara, como é o caso do português. De acordo com a terapeuta da fala Sílvia Lapa, o português tem uma opacidade média. “Enquanto alguns grafemas do português têm apenas uma representação fonética (como a vogal “i” ou a consoante “p”) existem outros grafemas com várias correspondentes na oralidade (como a letra “c” nas palavras “cão” e “cidade”)”, escreve a especialista no Público.

Aprender a ler em línguas transparentes e opacas

Há décadas que os estudos científicos demonstram que as pessoas que aprendem a ler numa língua opaca, como o inglês, estão em desvantagem em relação às que aprendem numa língua transparente.

De facto, há estudos que mostram que o ritmo de desenvolvimento da leitura em inglês é duas vezes mais lento do que em línguas mais transparentes, como o finlandês, o italiano ou o espanhol. Isto significa que uma criança finlandesa pode dominar a leitura básica num ano, enquanto uma criança de língua inglesa pode precisar de dois ou mesmo três anos para atingir o mesmo nível.

Assim, as pessoas que aprendem a ler numa língua opaca utilizam estratégias diferentes das que aprendem numa língua transparente. Por outras palavras, nem todos aprendemos a ler da mesma forma.

De um modo geral, nas línguas que utilizam um alfabeto, os princípios básicos da leitura são muito semelhantes, uma vez que aprender a ler implica interiorizar as regras de conversão grafema-fonema para compreender o texto.

No entanto, as diferenças na transparência da língua influenciam profundamente as estratégias que as crianças desenvolvem quando aprendem a ler.

Nas línguas opacas, como o inglês, é mais provável que desenvolvam uma dependência da memória visual para reconhecer palavras inteiras, enquanto as que aprendem em línguas transparentes podem “descodificar” uma palavra letra a letra.

Isto significa que uma criança que está a aprender a ler em inglês compreende rapidamente que precisa de memorizar padrões irregulares, uma vez que a descodificação de cada letra seguindo as regras gerais não funcionará em muitas ocasiões (como vimos anteriormente com “pint” e “mint”).

Por outro lado, uma criança que está a aprender a ler em espanhol pode ler as letras por si própria, porque isso funcionará na grande maioria dos casos. Há aqui um elemento de tentativa e erro, uma vez que as crianças descobrem naturalmente qual a estratégia que funciona à medida que vão avançando.

De facto, a transparência da língua não afeta apenas a aprendizagem do leitor comum, mas também a dos que sofrem de dislexia.

Estudos demonstraram que, em línguas com padrões ortográficos transparentes, como o espanhol ou o finlandês, alguns problemas associados à dislexia são menos pronunciados do que em línguas opacas, como o inglês ou o francês.

Aprender a ler numa segunda língua

Na sua recomendação sobre a aprendizagem e o ensino das línguas, o Conselho da União Europeia convida os Estados-Membros da UE a promoverem a educação multilingue, incluindo as competências de literacia em diferentes línguas.

Mas como é que podemos ter uma abordagem comum se o ponto de partida e o destino são diferentes em cada caso?

Em termos simples, não podemos e, tendo em conta os estudos científicos, também não o devemos fazer.

Décadas de investigação sublinham a importância de adaptar os métodos educativos às características específicas de cada combinação linguística, tendo em conta as características das línguas de partida e de chegada.

Imaginemos por um momento o caso de uma criança de língua espanhola que já lê rapidamente e com precisão em espanhol e que está agora a aprender finlandês.

As regras de conversão grafema-fonema são semelhantes nas duas línguas, o que ajudará a criança a adquirir mais facilmente a literacia finlandesa desde o início.

Consideremos agora o caso (muito mais comum) da mesma criança espanhola que está a aprender a ler em inglês.

Enquanto para essa criança o verbo espanhol “leer”, que significa “ler”, é sempre pronunciado /leer/, ela tem de aceitar que a palavra inglesa “read” pode ser pronunciada de duas maneiras – “reed” ou “red” – consoante o tempo verbal.

Para além de compreender estas irregularidades, a criança deve também aceitar que os seus conhecimentos prévios nem sempre serão úteis e que ver escritas palavras inglesas como “yacht”, “queue” ou “genre” pode oferecer poucas pistas sobre a sua pronúncia.

A transparência ortográfica de uma língua tem, portanto, um enorme impacto na forma como aprendemos e lemos, seja na nossa língua materna, seja numa língua adicional que aprendemos mais tarde.

A ortografia de uma língua não só influencia a facilidade de aprendizagem, como também modula a expressão de dificuldades específicas, como a dislexia, o que significa que os diferentes sistemas educativos têm de ajustar e adaptar as suas abordagens para resolver estes problemas.

Compreender as diferenças de transparência entre as línguas pode ajudar os alunos e os educadores a desenvolver melhores estratégias de ensino e aprendizagem no que respeita à palavra escrita.

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