/

Vender a íris por criptomoedas: jovens portugueses fazem fila por dinheiro “fácil” (mas há riscos)

2

Cada vez mais jovens portugueses vendem os seus dados biométricos por “uns tostões” em centros comerciais. Mas há consequências.

Dinheiro fácil, rápido e na teoria grátis sempre foi o maior chamariz e recentemente, são as bancas da empresa Worldcoin, do criador do ChatGPT, que atraem mais atenções por todo o país.

Por 10 tokens WLD — valor em criptomoeda que vale, no momento em que este artigo é redigido, com a taxa de câmbio atual, aproximadamente 70 euros — a empresa pede algo em troca que envolve pouco ou nenhum esforço: a leitura da sua íris.

Fontes que passaram recentemente pelo processo contam ao ZAP que receberam muito mais do que 10 tokens.

“Não foi preciso registar-me em nada, não tive de dar dados pessoais, só tive de pôr o número de telefone na aplicação”, diz um cliente da Worldcoin ao ZAP, que vendeu a sua íris à empresa quando a moeda valia menos — cerca de dois euros por token. Depois de receber, na hora, os 10 tokens, foi-lhe prometido um vale com mais três moedas virtuais, e de 10 em 10 dias recebe três moedas até atingir um total de 77 tokens WLD. Na conversão atual, são mais de 550 euros.

A leitura é feita na hora e no local. Os funcionários explicam que a digitalização da parte mais visível dos olhos é feita através de uma tecnologia chamada Orb, que converte a imagem num código numérico cifrado conhecido como “WorldID”, uma espécie de “passaporte digital”, como descreve a própria empresa.

Esse código é depois comparado com outros códigos de íris de modo a verificar a sua individualidade — o que, segundo a empresa, é o grande objetivo de todo o processo: garantir que cada utilizador é único, não tem contas duplicadas e trata-se, de facto, de um humano.

A imagem fica supostamente guardada na RAM e não na hard drive, e é apagada mais tarde. Através de uma aplicação no smartphone, os clientes recebem a compensação sob a forma da criptomoeda da empresa, Worldcoin (WLD), que “trepou” mais de 200% no último mês — o que justifica o boom de procura parte de muitos jovens, que vão aos centros comerciais para terem direito a este “dinheiro fácil”.

“Então é por isso que agora há filas e antes estavam sempre às moscas”, exclama um utilizador no Reddit.

“Costumo ir a um Shopping onde já tem banca há muito tempo. Mas nunca tinham grande clientela. Nas últimas vezes que passei por lá está sempre um aglomerado enorme de pessoas”, confessa outro utilizador da rede social. “Estavam em Sete Rios, na Rede Expresso”, e “no Ubbo até faziam fila“.

“No Ubbo havia sistema de senhas. Estava a sair do supermercado e ouvi alguém da Worldcoin a gritar ‘quem tem senha para as 17h venha comigo’ e era uma multidão de pessoas“, lê-se.

Jovens de olho na troca

Foi neste centro comercial da Amadora que nasceu a primeira banca da Worldcoin em Portugal. Em poucos anos de vida, a empresa criada por Sam Altman e Alex Blania em 2021, que usa a biometria — no fundo, as propriedades únicas e mensuráveis de cada indivíduo —, para dar a cada ser humano na Terra uma “identificação digital”, espalhou-se por 16 pontos do país.

A loja original, no Ubbo, “recebe entre duas e três mil pessoas por dia“, revela a gerente do espaço ao Jornal de Negócios. São já 300 mil inscritos por todo o país.

São jovens, sem rendimento próprio, os que se sentem naturalmente mais aliciados pela proposta da empresa , e o chamariz de menores tem levantado muitas dúvidas sobre a proteção de dados dos utilizadores.

A íris é “a área mais resiliente, a que tem mais dados para garantir a distinção de um ser humano entre mil milhões”, diz ao Negócios o diretor regional para a Europa da Tools for Humanity, empresa que trata da operação do projeto. “É uma rede que permite provar que é humano no mundo digital”, diz.

No final da leitura da íris, a empresa dá três garantias. Uma delas é que as imagens são eliminadas de imediato, a não ser que a pessoa “dadora” de íris solicite o contrário. Fica guardada apenas uma mensagem com o código da íris para validar a individualidade acima referida, que confirma que a pessoa é, de facto, uma pessoa.

A empresa garante ainda que não vende nem venderá os dados pessoais de ninguém, nem mesmo os dados biométricos, e que todos os dados são encriptados de forma segura. Mas nem tudo é como parece.

Garantias pouco fiáveis, identidades em risco

Apesar das garantias da empresa, não há qualquer auditoria independente ou entidade externa que comprove as promessas da Worldcoin, lembra a DECO Proteste.

Visto que estes dados são uma forma de identificação pessoal, há fortes hipóteses de roubo de identidade.

Imaginemos o pior: a Worldcoin guarda estes dados biométricos da sua íris e, no futuro, a autenticação por íris torna-se comum, dada a sua equiparação ao ADN e impressões digitais na biometria. Se a empresa, por exemplo, sofrer um ataque informático, aqueles que venderam a sua íris estarão em maus lençóis.

Especialmente exigente no que toca à proteção dos dados pessoais das crianças, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados alerta para os riscos deste processo que abre portas a roubos de identidade. Impõe, a menores de 13 anos, consentimento dos seus representantes legais.

Apesar do discurso altruísta da empresa, as críticas choveram desde o início. A Forbes denunciou algumas práticas da Worldcoin, incluindo situações de pressão sobre os empregados para captar mais utilizadores, e promoções enganosas em países em desenvolvimento. Também foi revelado que a empresa nem sempre obteve um consentimento adequado das pessoas para digitalizar as íris.

“Quando a Worldcoin ainda estava no beta (não valia dinheiro) eu fui abordada por um homem na Estação do Oriente que estava a apresentar a moeda. Estava a tentar o despachá-lo mas ele sem a minha autorização enfiou a orb na minha cara, então não tive escolha se não instalar a aplicação porque eles já tinham o meu olho. Até hoje estou sour [amargo] sobre isso”, confessa outro utilizador no Reddit.

Os relatos não acabam aqui. “Fui abordado por eles no centro comercial. Simplesmente disseram que estavam a oferecer criptomoeda, sem mencionar qualquer recolha de dados biométricos”.

O objetivo, ainda longínquo, ao trocar esses tokens — além de um sistema 100% seguro de trocas económicas — será tornar a empresa numa organização com uma governação descentralizada: cada token daria direito de voto, a uma espécie de “acionistas”, para tomadas de decisão internas.

Dar sangue ao conceito de “economia online” era a meta desde o início. Foram propostos vários usos para a sua tecnologia, desde votar em eleições até realizar transações financeiras, mas o verdadeiro objetivo da empresa permanece incerto.

Os especialistas encaram a cedência dos dados biométricos como uma preocupação e têm vindo a alertar, desde o início: a identidade das pessoas está em risco.

Investigações a decorrer

Órgãos reguladores da França e do Reino Unido já anunciaram que estão a investigar a iniciativa.

Espanha, por exemplo, foi o país europeu onde a Worldcoin teve mais sucesso. De acordo com El Confidencial, a empresa conseguiu recolher as íris de mais de 150 mil pessoas, no espaço de um ano.

Román Ramírez, especialista em cibersegurança manifestou em declarações ao jornal preocupações acerca da falta de segurança e privacidade dos dados biométricos sublinhando que a íris, o ADN e as impressões digitais podem sempre constituir alvos de risco.

“É surpreendente que haja pessoas dispostas a fazer isto. Acredito que é porque não têm perceção do risco e, quando a tiverem, talvez seja tarde demais, pois não compreendem bem o que isso implica”, disse.

“Não importa que transformem a imagem num código numérico, depois a cifrem ou encriptem e tudo o que queiram contar. Se eu posso usar o meu padrão de íris, tu tens que poder lê-los e compará-los em algum momento. Senão, não poderia usá-los, porque tem que existir alguma verificação para confirmar. E a conversa acaba aí”, explicou Ramírez.

A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) já falou com a empresa e tem uma “averiguação” aberta, contou ao Negócios, a quem deixa, para já, o aviso. “As pessoas devem pensar duas vezes”.

Tomás Guimarães, ZAP //

2 Comments

  1. Ninguém dá nada de borla… Mas é apenas mais um esquema da chamada “engenharia social”… Daqui a uns tempos irão perceber o porquê de lhes pagarem para lerem a sua íris… E não vai ser bonito

Deixe o seu comentário

Your email address will not be published.