UE anuncia planos para proteger os jornalistas de processos judiciais

Domenic Aquilina / EPA

A jornalista maltesa assassinada em 2017, Daphne Caruana Galizia

A diretiva Anti-Slapp também permitiria aos Estados-membros da UE não considerar válidas as sentenças proferidas no Reino Unido.

O executivo da União Europeia (UE) propôs medidas para proteger jornalistas e ativistas de processos judiciais, quando trabalham para expor a corrupção e atos ilícitos, de acordo com o The Guardian.

Na primeira proposta deste tipo na Europa, a Comissão Europeia está a visar os chamados “processos judiciais estratégicos contra a participação pública”, ou Slapps, onde indivíduos e grandes empresas tentam utilizar a lei para intimidar ou silenciar repórteres de investigação e organizações não governamentais.

Ao abrigo de um projeto de diretiva da UE, os jornalistas e as ONG da UE poderiam recorrer aos tribunais para que estes cancelem os processos judiciais “infundados” que envolvam mais do que um Estado-membro.

Numa ação contra Londres — frequentemente chamada a capital da calúnia da Europa — os tribunais dos estados-membros poderiam recusar-se a reconhecer ou a executar sentenças em casos Slapp, de países não pertencentes à UE.

A UE afirma que só têm poderes legais para agir em casos transfronteiriços e acredita que podem encerrar o “forum shopping”, onde os clientes mais ricos procuram o regime jurídico mais amigável, para perseguir os críticos nos tribunais.

Mas, numa recomendação separada não vinculativa, a comissão está também a instar os estados membros a reprimir os processos judiciais sem um elemento transfronteiriço, a forma mais comum de litígio abusivo.

Os litígios abusivos proliferaram na Europa nos últimos anos, suscitando avisos de especialistas em direitos humanos de uma ameaça crescente à liberdade de expressão do sistema de justiça e do Estado de direito.

Quando a jornalista de investigação maltesa Daphne Caruana Galizia foi assassinada em 2017, estava a lutar contra 47 processos judiciais de uma série de empresários e políticos, incluindo casos que envolviam advogados londrinos.

O seu filho mais velho, Matthew Caruana Galizia, um jornalista de investigação que liderou uma campanha europeia contra processos judiciais abusivos, disse que Slapps tinha feito da vida da sua mãe “um inferno vivo“.

“Os casos de Slapps arruínam realmente a vida das pessoas”. Destroem carreiras e destroem vidas”. Foi assim para a minha mãe. E é assim para muitos outros jornalistas”, sublinhou o jornalista.

No ano passado, o repórter criminal italiano Cesare Giuzzi do Corriere della Sera anunciou que desistia de falar em eventos públicos, após ter sido processado mais de 50 vezes por membros de gangues de crime organizado, políticos, e empresários.

Publicou um texto no Facebook, onde explicava que nunca nenhum juiz tinha encontrado provas contra ele, mas que estava exausto de lutar contra alegações falsas por causa do que tinha dito em eventos públicos.

Os grupos da campanha foram também alvo de processos judiciais abusivos: desde 2015, foram instaurados 42 processos na UE contra defensores dos direitos humanos, incluindo os que procuram proteger o ambiente.

“Estes litígios são normalmente iniciados por pessoas poderosas e ricas, contra aqueles que obviamente não têm um amortecedor financeiro”, realçou Vĕra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia.

Jourová afirmou ainda que os jornalistas freelance e aqueles que trabalham para publicações mais pequenas enfrentaram “um problema terrível” com esses litígios.

“Esta lei deveria desencorajar toda a gente [na UE] a ir a Londres para tal recurso”, insistiu, acrescentando que os processos judiciais no Reino Unido acontecem com bastante frequência.

Jourová salientou também que era necessário haver mais discussões sobre “como ter melhores garantias de que os litígios abusivos não irão continuar no território britânico, virando-se contra os jornalistas e defensores dos direitos humanos da UE”.

Ao abrigo das propostas da UE, se um caso for rejeitado por ser abusivo, os requerentes terão de suportar os seus custos e os alvos da ação judicial poderão reclamar uma indemnização.

Matthew Caruana Galizia disse que a comissão tinha feito o “máximo possível” no quadro do direito da União Europeia.

“A minha família e eu temos o prazer de lhe chamar a lei de Daphne, porque pensamos que é isso que isto é”, contou.

“Quando se trata de transposição, essa será a oportunidade, penso eu, de cobrir mais tipos de casos para além dos casos transfronteiriços. Assim, teremos então de continuar a campanha a nível dos estados-membros”, explicou.

Diana Riba i Giner, deputada separatista catalã e membro da comissão das liberdades civis do Parlamento Europeu, referiu que a comissão não tinha ido suficientemente longe, porque a sua proposta legal se centrava nos casos transfronteiriços, não nos casos domésticos, e no direito civil, em vez dos casos criminais.

“Os ‘loopholes’ continuarão a permitir ataques contra jornalistas, sociedade civil e todos aqueles que defendem a democracia”, admitiu.

Flutura Kusari, conselheira jurídica do Centro Europeu para a Liberdade de Imprensa e Media, disse que as propostas da UE eram um desenvolvimento histórico.

“Temos visto que os Slapps destroem carreiras e vidas. Hoje é o primeiro passo para criar sérios obstáculos àqueles que esperam usar Slapps para censurar jornalistas e esconder a verdade”, alegou.

Acrescentou que as propostas deveriam ser vistas como um padrão mínimo para os estados membros. Embora lamentasse que o Reino Unido já não fosse um Estado membro da UE, esperava influenciar a legislação britânica através de uma futura recomendação do Conselho da Europa contra os Slapps.

O governo do Reino Unido prometeu no mês passado reformas legais para desencorajar ações legais por parte de oligarcas e empresas poderosas.

Kusari está otimista acerca dos planos do governo britânico. “Eles já não podem ficar calados e fechar os ouvidos e os olhos sobre o impacto da Slapps no jornalismo“.

Alice Carqueja, ZAP //

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