Ligações a terrorismo e tráfico de drogas e armas. O lado negro de centenas de diplomatas

Os cônsules honorários beneficiam de vários privilégios diplomáticos e de pouca supervisão. Uma nova investigação descobriu que cerca de 500 cônsules em todo o mundo já foram acusados ou suspeitos de crimes.

Os cônsules honorários operam numa zona cinzenta no plano legal, estando sujeitos a pouca vigilância e beneficiando de imunidade diplomática pelo menos parcial. Uma nova investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIC) e da ProPublica descobriu os segredos sórdidos de centenas destes diplomatas.

Fundado há vários séculos, o sistema de cônsules honorários nasceu para ajudar os países mais pobres e que não conseguiam financiar embaixadas no estrangeiro, mas é agora usado pela maioria dos governos mundiais.

Ao contrário dos embaixadores, os cônsules trabalham a partir do seu país de origem e usam a sua influência para promover os interesses dos governos estrangeiros que os nomeiam. Como moeda de troca, recebem alguns dos privilégios dados aos diplomatas de carreira, como a imunidade.

A Convenção de Viena sobre Relações Consulares, de 1963, regula as regras da diplomacia internacional e define que os cônsules honorários não gozam de imunidade total. No entanto, têm imunidade em tudo o que estiver estritamente relacionado com os seus actos consulares.

Assim, a correspondência e arquivos destes cônsules não podem ser apreendidos. As suas encomendas que sejam declaradas como bagagem consular, também não podem ser revistadas, independentemente do tamanho e peso.

Este foi o caso de Marco Carrai, cônsul honorário de Israel em Florença, na Itália. Carrai era suspeito de ter financiado ilegalmente um partido político. Quando os investigadores italianos revistaram o seu escritório em busca de provas em 2019, foram impedidos de ver vários documentos porque Carrai simplesmente declarou que estavam relacionados com assuntos consulares.

Os cônsules honorários também podem solicitar protecção oficial, placas diplomáticas, passaportes diplomáticos ou licenças de porte de armas. Embora não sejam isentos de impostos, as instalações e despesas que designam como consulares beneficiam de uma isenção fiscal.

Estas protecções legais levaram a que estes cargos atraíssem as pessoas erradas. A investigação descobriu que pelo menos 500 destes cônsules, tanto ainda em funções como reformados, já foram acusados de crimes ou estiveram envolvidos em polémicas. Alguns foram até condenados por crimes sérios.

Ligações a grupos terroristas e a Putin

O ICIJ e a ProPublica analisaram registos judiciais, documentos governamentais, relatórios públicos e arquivos de notícias de seis continentes e descobriram que ove actuais e ex-cônsules têm ligações a grupos terroristas. A maioria estava ligada ao Hezbolla, um partido político no Líbano que já levou a cabo vários ataques terroristas.

Por exemplo, em 2012, Faouzi Jaber, um traficante de armas próximo ao Hezbollah, ofereceu títulos consulares a investigadores americanos disfarçados que se apresentavam como compradores de armas para os guerrilheiros colombianos das
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).

Agora é sua oportunidade de ter imunidade“, disse Jaber às autoridades, de acordo com uma gravação de áudio. “Posso fazer de vocês cônsules”, garantiu. Hoje o traficante de armas afirma ter sido enganado pelos investigadores e nega ter ligações com o Hezbollah.

Cerca de 30 cônsules foram sancionados pelos Estados Unidos e por outros governos, incluindo 17 que sofreram sanções enquanto estavam no posto. Alguns deles eram próximos de Vladimir Putin e foram punidos após o início da guerra na Ucrânia este ano.

Na Macedónia do Norte, os serviços de inteligência descobriram que dois cônsules permitiram que os seus escritórios fossem usados como a base de uma operação de propaganda russa que tinha como objectivo travar a expansão da NATO.

Em Myanmar, um cônsulo sancionado pelos EUA e por outros governos alegadamente usou as suas ligações para ajudar no fornecimento de armas à junta militar que tem levado a cabo o genocídio.

Escapar impune

Alguns dos cônsules identificados já eram suspeitos ou até tinham sido acusados de crimes antes de serem nomeados para os cargos. Pelo menos 57 cônsules foram sentenciados enquanto estavam na posição.

Há inúmeros casos de cônsules honorários que mantiveram os seus privilégios muito depois de terem sido julgados – alguns até mesmo depois de terem sido condenados.

Uma cônsul honorária da Alemanha no Brasil, por exemplo, só foi despedida depois do caso chegar à imprensa e de os jornalistas questionarem o Ministério dos Negóciso Estrangeiros sobre o seu julgamento em torno de um negócio de terras. Um outro caso na Suíça também só acabou em demissão após a pressão dos jornalistas às autoridades.

As denúncias de impunidade foram geralmente recebidas com silêncio e poucos governos avançaram com a implementação de salvaguardas, apesar das advertências das autoridades policiais.

“Os cônsules agem de forma totalmente autónoma e não são controlados pelo Estado que representam. O governo não tem hipótese de intervir nos seus assuntos”, lê-se num relatório confidencial de 2019 escrito por investigadores em Espanha sobre o caso de três cônsules honorários suspeitos de lavarem de dinheiro para um traficante de drogas.

Em 2007, a Libéria demitiu todos os seus cônsules honorários para proteger a reputação do Estado, já que muitos estavam envolvidos no tráfico de drogas, lavagem de dinheiro ou venda ilegal de passaportes.

Reconhecendo tais riscos, países como Estados Unidos, Argentina, Canadá, Bolívia e Costa Rica não nomeiam cônsules honorários. Portugal tanto acolhe como nomeia cônsules honorários.

Falhas na supervisão

Milhares de cônsules honorários continuam no activo em todo o mundo, mas não há uma contagem confiável do total ou forma de determinar quantos e quem já violou a lei ou abusou dos seus privilégios.

78 países que não identificam publicamente os seus cônsules honorários e esta falta de transparência dificulta ainda mais o trabalho das autoridades.

A procura é tanta que agora até há quem use o sistema para fazer negócio e já surgiu uma indústria de consultores online que oferecem ajuda para quem quiser ser nomeado cônsul em troca de dezenas de milhares de dólares.

Ilyas Golcuklu, do departamento de Direito Internacional da Universidade de Altinbas, na Turquia, acredita que a reforma é necessária para garantir a transparência no uso e concessão do estatuto de cônsul honorário.

“Os pedidos de cônsul honorário devem ser tratados com sensibilidade e devem ser rejeitados com soberania se não servirem ao propósito de estabelecer relações comerciais, se houver a possibilidade de serem usados ​​para fins criminosos ou de abuso de poder”, afirma à DW.

Adriana Peixoto, ZAP //

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